Há 30 anos… dia 25 de fevereiro de 1987.
POR RODRIGO MELLO*
No antológico Febre de Bola, o escritor inglês Nick Hornby descreve, num capítulo intitulado “O melhor momento da vida”, a sensação de um título ganho pelo Arsenal com um gol no último minuto:
“Qual a analogia correta para um momento como esse? (…) não existe literalmente nada para descrever isso. Já exauri todas as opções disponíveis. Não me recordo de mais nada que eu tenha desejado por duas décadas (o que mais pode com sensatez ser desejado por tanto tempo?), e tampouco recordo-me de algo que tenha desejado ainda garoto e já homem feito. Portanto, por favor, sejam tolerantes com aqueles que descrevem um momento esportivo como o melhor de suas vidas. Não carecemos de imaginação, e tampouco levamos vidas tristes e áridas; apenas a vida real é mais pálida e mais chata, e contém menos potencial para o delírio inesperado”.
Pois eu tive o privilégio de viver um momento como esse aos 10 anos de idade, graças a Antônio de Oliveira Filho, o Careca.
Cresci e perdi um pouco do fanatismo adolescente que tinha pelo São Paulo. Talvez isso seja normal com a idade (não foi no caso de Hornby), ou talvez o próprio esporte tenha perdido um tanto do seu brilho, ofuscado pelo excesso de dinheiro e canalhas.
Acontece que em 1987 eu só pensava em futebol, e só pensava no São Paulo.
Por uma dessas coisas estranhas que só acontecem por aqui, o Campeonato Brasileiro de 1986 terminou já em 1987. Eu acabava de começar a 5a série do Ginásio, hoje o 6o ano do Ensino Fundamental, e completaria 11 anos dali a pouco.
Ninguém gosta mais de futebol do que um menino de 10, 11, 12 anos. E é por isso que aquele gol do Careca me é tão importante, um pilar da minha memória de garoto. Meu time teve outros ídolos, mas eu já tinha outras idades, e o futebol ocupava outros lugares na minha vida. Em 1986-87 o futebol era tudo pra mim, e só meu time tinha Careca.
É verdade, meu time também tinha Oscar e Darío Pereyra na zaga (o primeiro jogou pouco naquele BR-86!), tinha Silas e Pita no meio, e tinha Muller e Sidney no ataque. Fizemos uma campanha memorável, e com meu pai pude acompanhar a reta final num Morumbi sempre lotado, onde passamos com classe por Fluminense e América-RJ. Na final, em dois jogos, um Guarani cheio de jovens craques (além de um tal de Tite, meia…): o zagueiro Ricardo Rocha, o meia Marco Antonio Boiadeiro, o ponta João Paulo, e o centroavante Evair, que dividiu com Careca o primeiro placar da final, no Morumbi, num 1×1 que prenunciava o equilíbrio da finalíssima, marcada para uma quarta-feira à noite, em Campinas.
Mas vou contar melhor desse jogo pelos olhos de quem estava lá: enquanto meu pai e eu sofríamos na frente da TV, em São Paulo, o engenheiro agrônomo Douglas Oliveira estava em Campinas, nas arquibancadas do estádio Brinco de Ouro da Princesa (o nome mais bonito entre todos os estádios do mundo, e que talvez seja demolido para construção de mais um maldito shopping center, enquanto ficamos babando feito idiotas para arenas com nomes de seguradoras e companhias aéreas). São-paulino, 35 anos à época, Douglas acompanhava nervoso seu time enfrentar os donos da casa. Vivendo então em Campinas, ele deixou a família em casa para ir ao campo ver Careca jogar. O estádio estaria quente demais para que levasse junto o filho André, de 9 anos, fiel companheiro já naquela época, mas pequeno demais para uma final em território adversário.
No tempo normal, a finalíssima terminou novamente 1×1, gols arrastados feitos ainda no começo do primeiro tempo – o do Guarani foi na verdade um gol contra do lateral tricolor Nelsinho, e o do São Paulo uma cabeçada do moderno volante Bernardo.
(A história poderia ter sido diferente se o árbitro José de Assis Aragão tivesse marcado um pênalti claro sofrido por João Paulo, do Guarani, no meio do segundo tempo. Com alguma parcialidade, digo que aquela disputa era tão equilibrada que, possivelmente, o São Paulo teria empatado novamente).
Já a prorrogação foi eletrizante, colocando, talvez, essa final no topo do pódio de todas as finais de Brasileirão, até hoje: com 1’, Pita fez para o São Paulo; aos 7’, Boiadeiro empatou para o Guarani, e o primeiro tempo da prorrogação terminou novamente empatado! Aos 3’ do segundo tempo, João Paulo colocou o Bugre na frente, e o anfitrião foi mantendo o resultado bravamente, a ponto de a torcida local já começar a celebrar o título, dos alto-falantes do Brinco de Ouro, começarem a tocar o hino do clube, e da torcida são-paulina começar a deixar o estádio.
Aí aparece a história de Douglas:
Como um louco, ele se posta na “boca” da arquibancada, impedindo a saída dos torcedores incrédulos, gritando “Quem tem Careca não vai embora antes! Quem tem Careca não morre pagão!”. (Que frase, meu Deus!) Mal Douglas terminava de pronunciar seu brado, o zagueiro Wagner Basílio dava um último chutão para a frente. Lançamento que encontrou a cabeça de Pita, que, mesmo dividindo a bola com o grande Ricardo Rocha (de nariz quebrado!), conseguiu desviá-la para a esquerda, na entrada da grande área, encontrando ninguém menos que o artilheiro Careca. A bola quicou e subiu, e feito um possesso (ah, Nelson Rodrigues, que falta você nos faz…) o centroavante desferiu uma bomba com o pé esquerdo, num sem-pulo que só um craque tem coragem de dar aos 120 minutos de jogo, e que só um craque consegue meter dentro das redes.
Atrás do gol oposto do estádio, vendo a rede estufar, os que não acreditavam se juntaram aos que acreditavam, e todos juntos levantaram Douglas, carregado nos braços pela torcida que se espremia no pequeno setor do estádio reservado aos visitantes. Em êxtase, assistiram à vitória na disputa de pênaltis e saíram celebrando pelas ruas campineiras.
Que história! (História que conto pra todo mundo quando esse assunto surge, e que encho de floreios provavelmente fictícios depois de algumas doses, lacrimejando ao imaginar Douglas glorioso nos braços da massa tricolor).
Já eu era apenas um garoto de 10 anos, cheio de medos e superstições: quando o relógio marcou 10 minutos do segundo tempo da prorrogação, apavorado com a derrota iminente, e traumatizado com a eliminação recente na Copa de 86, deixei meu pai na sala e fui para meu quarto, subi no beliche, e… comecei a rezar! Invoquei todos os santos no silêncio em que meus irmãos dormiam, naquele início de madrugada paulistana. De repente, meu pai começa a urrar “Careca, gol!, Careca, gol!” pelo corredor do apartamento, entra no quarto e me arranca do beliche com seus braços, me levando de volta à sala em seu colo. Um idiota da objetividade diria que não vi aquele gol ao vivo, mas é como se eu tivesse visto, e é como se ele tivesse acontecido por minha causa.
Douglas, coração-de-leão, nos braços da massa; eu, um garoto ainda conhecendo os mistérios do futebol, nos braços de meu pai. Nós dois e o mundo inteiro sabíamos que, apesar de o gol ter sido de empate, e que ainda haveria a disputa de pênaltis, o jogo havia sido ganho ali, no monumental gol de Careca. São Paulo, bicampeão brasileiro.
(Detalhe: Careca e Evair chegaram à partida final empatados em gols na artilharia do campeonato, cada um com 24 gols; então, o gol do título também foi o da artilharia. Evair foi um grande jogador, mas Careca foi craque: no Olimpo há uma hierarquia, e ela foi respeitada nesse certame).
Voltando ao Nick Hornby: em seu livro, ele defende a tese de que nós, torcedores fanáticos, somos capazes de suportar toda uma vida de derrotas e humilhações em troca de um só momento como esse que descrevi.
O São Paulo nos deu muitas outras alegrias, mas Douglas e eu intimamente já sabemos: o gol do Careca foi o gol das nossas vidas.
* Rodrigo Mello é psicólogo, professor e tricolor. E uma parte dele foi forjada naquela noite de 25 de fevereiro de 1987.
Final, na íntegra:
Melhores momentos e gols:
Primeiro jogo:
+MAIS:
Olá, caro João!
Agradeço demais o seu comentário e seu relato! Muito emocionante esse dia, com certeza!
Fique com o efemérides para ler mais textos como este!
Abraço,
Fernando
Que grande emoção poder lembrar e reviver essa final.
Estive em todos os jogos desta fase final no Morumbi, grandes jogos contra America e Fluminense e tambem a final contra o Guarani.
Meu grande companheiro e mentor meu pai Alfredo, que me fez são paulino, estava junto em todas as partidas e nesta final na casa de um tio vendo pela TV.
A emoção minha , moleque de 14 anos, e dele com 44 anos, juntos após o gol salvador do grande Careca é algo surreal, maravilhosa.
Nunca esquecerei deste gol e desta comemoração tão maravilhosa que tive a honra de assitir ao lado do meu querido pai.
Outros títulos vieram depois deste campeonato, outras conquistas tão maravilhosas quanto esta, más igual a este GOL que gerou esta conquista acho que nunca mais.
Acho que esta data desta conquista será para sempre.
Como é bom ter essa paixão dentro do nosso coração, obrigado meu TRICOLOR!!!
São momentos como estes que fazem a gente viver para poder recordar!!
Salve grande CARECA!!!
Que fantástico, caro Leandro!
Obrigado pelo comentário e pela audiência!
Fique com o efemérides!
Abraço,
Fernando.
Esse foi daqueles jogos que servem para consolidar o amor de uma criança pelo clube de futebol escolhido.
Lembro-me como se fosse hoje da partida épica disputada em Campinas.
No último minuto da prorrogação, eu, um garoto prestes a completar 13 anos conhecia um tipo de emoção que até então não tinha experimentado. Depois, nos penaltis, a consagração!!!
Agradeço a cada jogador tricolor da época por colocar para sempre no meu coração e na minha alma as cores vermelho, branco e preto.
Saudações tricolores!!!
Leandro Vicente Zacchi
PQP.Esse jogo foi do caralho.