Há 35 anos… dia 15 de fevereiro de 1981.
O coração ligado no ampli
POR WALTERSON SARDENBERG Sº*
Quando Mike Bloomfield morreu, em San Francisco, no dia 15 de fevereiro de 1981, há exatos 35 anos, não ganhou os obituários que merecia. Longe disso. Os jornais mundo afora publicaram notas diminutas, aqui e ali, embora a morte de Mike reunisse os ingredientes ideais para o sensacionalismo. O guitarrista tinha apenas 37 anos quando o seu corpo foi encontrado em um estacionamento na região de Forest Hills, no assento traseiro do seu carro, um surrado Mercury 1971. Ao seu lado havia um frasco de barbitúricos Valium. O veredito: overdose. Especula-se que a cena foi forjada. Mike teria morrido em uma festa na noite anterior. Alguns participantes do rebu montaram a fraude para evitar publicidade negativa. O mistério continua — e, ao que tudo leva a crer, assim permanecerá.
O fato de morrer como um intruso indesejado em uma festança resume de modo alegórico o contexto em torno de Mike naqueles dias. Ele nada tinha a ver com a década que se iniciava. Era um estranho no ninho nos anos 1980. Sim, Mike era uma figura dos anos 1960, de suíças e molambentas camisas de botões de madrepérola, sobrevivendo de aulas de guitarra e até mesmo de uma trilha sonora para filme pornô. Um artista romântico atirado na aurora de uma década assolada por baterias eletrônicas, farsantes clipes da MTV, monocórdio rock pós-punk, insossa tecladeira e astros com paletós verde-limão com ombreiras — e que pareciam ter passado a tarde no coiffure.
Não, aquele não era um mundo para Michael Bernard Bloomfield, o homem que inverteu a história dos roqueiros famosos. Ao contrário deles, nasceu muito rico e morreu com dificuldade para bancar o aluguel. Uma vida e uma carreira errantes.
Sua terra natal é a cidade-símbolo do blues elétrico: Chicago, onde veio à luz em 28 de julho de 1943. Cresceu como o filho mais velho — tinha um irmão mais novo — em uma família judia de muitas posses, na região norte da cidade. Exatamente o lado oposto de onde rolavam os blues, o Southside. Adolescente, começou a copiar, em um instrumento presenteado pela avó, os solos de dois exímios guitarristas brancos do rock’n’roll: Scotty Moore, da banda de Elvis Presley, e Cliff Gallupp, dos Blue Caps de Gene Vincent. Bastaram mais alguns anos e o garoto já estava imerso nos blues. E do outro lado da cidade, claro.
Em 1963, fez sua estreia em disco, como músico de apoio do blueseiro Sleepy John Estes. Enquanto isso, circulava pelos bares noturnos, onde era um dos poucos jovens músicos brancos — entre eles, o guitarrista Steve Miller — a receber calorosa guarida de Muddy Waters e Howlin’ Wolf. Ao ouvi-lo, o gaitista Paul Butterfield, também branco, convidou-o para participar de seu grupo, ainda que já tivesse um ótimo guitarrista, Elvin Bishop. O disco de estreia da Paul Butterfield Blues Band, lançado em 1965, chamou a atenção de muita gente boa. Em especial, pela guitarra de Mike, com seu “ataque” preciso e seu fraseado rico e limpo. Escute a sua composição “Screamin’”, que abre o lado B do álbum, e confira. Chuck Berry ouviu e gostou a ponto de convidar a banda a acompanhá-lo no LP Fresh Berry. O disco abre com uma maravilha: “It Wasn’t Me”.
Outro ouvinte atento foi Bob Dylan, que estava prestes a dar uma guinada na carreira. O cantor e compositor resolveu eletrificar a sua música e o fez, de propósito, em um bastião do som acústico: o Festival de Folk de Newport de 1965. Dylan apresentou-se com uma Fender Stratocaster, acompanhado por Mike na guitarra solo, Al Kooper no órgão, Barry Goldberg no piano e a cozinha da Paul Butterfield Blues Band: Jeromy Arnold no baixo e Sam Lay na bateria. Para os puristas, foi mais do que uma audácia. Foi um escândalo. Dylan recebeu tantas vaias que chegou a sair do palco depois do terceiro número. Voltou tão aturdido que teve de requisitar uma gaita em E para a plateia. Perdera a sua nas coxias.
Mike e Al Kooper também participaram da gravação do disco Highway 61 Revisited, lançado por Dylan em agosto daquele ano. É o álbum que abre com “Like a Rolling Stone”. Em seu livro de memórias, Basckstage Passes, Kooper lembrou-se do dia em que conheceu Mike. Foi muito especial. Kooper entrara no estúdio com esperança de tocar guitarra. Logo desistiu e passou para o órgão elétrico. Isso porque Dylan apareceu com um guitarrista que chegara da rua, em pleno inverno, trazendo em mãos uma Fender Telecaster sem capa, castigada pela chuva e pela neve.
“O cara nem ligou”, escreveu Kooper. “Simplesmente foi até um canto, secou a guitarra com um trapo e a conectou no amplificador. Estufou o peito e começou a tocar uma das melhores guitarras da história do rock”. Kooper relembrou, ainda: “Eu era 90% de ambição e 10% de talento. E Mike justamente o contrário: 90% de talento e 10% de ambição”.
De volta à Paul Butterfield Blues Band, um Mike ainda mais à vontade participou do antológico álbum East-West, de 1966. A faixa-título, instrumental, é um primor. São 13 minutos de pura jam session. Foi a matriz de um caminho percorrido por muitas bandas na segunda metade dos anos 1960, sobretudo na Califórnia. Mike, aos 23 anos, estava em pleno domínio do estilo que o marcaria: blues à B.B. King com muito jazz, nuanças de orientalismos e improvisos daquilo que se chamaria psicodelia. Ao ouvir a faixa, compreende-se o que Eric Clapton quis dizer em 1966 ao tratar o guitarrista de Chicago como “a música sobre duas pernas”.
A formação da Paul Butterfield Blues Band da época agradava muito a Mike. “Foi a melhor banda com quem toquei”, ele confessaria. Mas Elvin Bishop, o outro guitarrista, estava insatisfeito. Não tinha espaço para solos. Antes que o ambiente degradasse, Mike se picou, para entrar no Eletric Flag, um supergrupo formado por Buddy Miles (bateria e vocais), Harvey Brooks (baixo), Barry Goldberg (teclados), Nick Gravenites (guitarra e vocais) e um naipe de metais. O show de estreia ocorreu no histórico Festival de Monterey de 1967. Pode-se medir o entusiasmo de Mike ao ouvi-lo fazer a apresentação da canção “Over Lovin’ You” no evento. O Eletric Flag era uma banda de blues-rock com muito soul. Em especial, por causa dos vocais de Buddy Miles, um sujeito tão talentoso quanto encrenqueiro — temperamento que apressaria o fim do grupo.
Quem também se entusiasmou pelo Eletric Flag foi o rei dos filmes B, Roger Corman. Ele convidou o grupo para fazer a trilha de um dos primeiros LSD-Movies da história, The Trip (tem no YouTube) — vertente que José Mojica Marins seguiria, sem saber, no fantástico Ritual dos Sádicos (também chamado de O Despertar da Besta). A partir daí, Mike colaboraria com outros cineastas. Até mesmo com “A Fábrica”, de Andy Warhol, em Medium Cool e Bad. Ao mesmo tempo, ele próprio se envolveria com as drogas pesadas. Para piorar, sofria de uma insônia crônica, que se agravou com a vida desregrada.
“Mike era orgânico. Ele ligava seu coração diretamente no amplificador”, disse o pianista Barry Goldberg à Rolling Stone. Outro tecladista, Mark Naftalin, parceiro na Butterfield Blues Band, comentou: “Ele punha toda a sua dedicação no que fazia. Mas não tinha a mesma ambição. Não estava nem aí para o sucesso”. Na realidade, Mike foi se tornando cada vez mais recluso. Seus problemas pessoais passaram a interferir demais carreira. Até mesmo no disco mais incensado que gravou, Super Session.
Na época, 1968, seu velho admirador, Al Kooper, que além de organista é cantor, compositor e produtor — descobriu e produziu, por exemplo, o primeiro disco do Lynyrd Synyrd – convidou-o para dividir um álbum. Mas Mike não foi até o fim. Gravou material suficiente apenas para um lado. Antes de partir, deixou um bilhete lacônico para Kooper: “Não consegui dormir. Fui para casa”. Resultado: o lado B do disco foi feito com Stephen Stills na guitarra.
Ainda assim, a participação de Mike em Super Session é sensacional. Ele pouco recorre a pedais ou demais artifícios. Tudo se resume a sua guitarra Gibson Les Paul Sunburst com o reverb do amplificador valvulado acionado. O controle é feito apenas a partir dos botões do instrumento. Com essa economia de recursos, ele toca uma barbaridade. Três faixas merecem atenção especial — todas instrumentais. “Albert’s Shuffle” soa como um B.B. King movido a anfetamina. “Really” é um blues de encantadora doçura. Já “Stop” tem um dos mais incisivos “ataques” de início. Enfim, Super Session tornou-se tamanho sucesso que suscitou uma turnê em dupla com Kooper. Dela resultou outro discaço: The Live Adventures of Mike Bloomfield and Al Kooper, de 1969. Carlos Santana, fã esmerado, participa de uma faixa. Ele diria mais tarde: “Bloomfield é o que eu gostaria de ser para o resto da vida”.
Se a década de 1960 viu a ascensão de Mike, a seguinte seria de altos e baixos. Um disco com John Hammond Jr. e Dr. John, Triunvirate, estava aquém do talento dos envolvidos. O mesmo vale para o primeiro LP do KGB, um supergrupo montado com o baixista Rick Grech, o baterista Carmine Appice, o cantor Ray Kennedy e o tecladista Barry Goldberg. Vendeu meio milhão de exemplares, sim. Mas era falso. Mike fez apenas overdubs, ou seja, gravou em cima de bases feitas previamente — um acinte para quem, como ele, só reconhecia o blues ao vivo.
Há, claro, os discos solo. Mas eles padecem de um problema: Mike jamais foi um grande cantor. Por isso, seus melhores trabalhos despontaram como parcerias com amigos como Mike Naftalin e Bob Jones, bons vocalistas. Assim ocorre no impecável Live at the Old Waldorf (1976) e no belíssimo Living in the Fast Lane (1980), lançado pouco antes de sua morte. Há, ainda, o álbum If You Love These Blues, Play’em as You Feel (1976), um disco didático, em que ensina as diferentes técnicas de violão e guitarra.
O Mike da segunda metade da década, seja como for, é uma outra pessoa. Tornou-se mais arredio. Quase um ermitão. Passou a preferir o violão à guitarra elétrica. Trocou os solos pelas sacadas harmônicas. Em vez de grandes turnês, preferiu os shows de divulgação da marca de instrumentos musicais Tacoma, que o manteve sob contrato para apresentações na área da baía de San Francisco. Ainda assim, fez uma breve excursão europeia em 1980. Dela resultou o disco Live in Italy. Uma semana antes de morrer, o canto de cisne: apareceu como convidado acompanhando Bob Dylan em um concerto no Warfield Theatre de San Francisco. Foi aplaudido freneticamente.
Nos dias que seguem, as novas gerações devem ficar encafifadas ao baterem os olhos na lista dos 100 maiores guitarristas de todos os tempos da Rolling Stone e toparem com Mike Bloomfield na 42º posição. Quem seria ele? A lista, por sinal, é injusta. À frente de Mike há ao menos três nomes que não serviriam nem para carregar sua guitarra — até porque ele mesmo preferia fazê-lo, e muitas vezes sem o case, como nas sessões de Highway 61 Revisited.
Foi para este público jovem que seu velho amigo Al Kooper montou uma antologia com um título autoexplicativo, colocada na praça em fevereiro de 2014: From his Head to his Heart to his Hands. A garotada talvez estranhe a trajetória de um artista que jamais quis ser um astro. Aproveitava, sim, as facilidades do sucesso para obter drogas e sexo. Mas rechaçava a idolatria, ainda que fosse, sem favor nenhum, o segundo melhor guitarrista americano de sua geração — Hendrix é imbatível.
Mike queria ser visto, acima de tudo, como um músico, como alguém que precisava expressar com urgência, na linguagem dos blues, aquilo que lhe ia pela cabeça e o coração.
“Sem a guitarra sou como um poeta sem as mãos”, resumiu quando tinha 24 anos.
* Walterson Sardenberg Sº nasceu em 6 de julho de 1957, o dia em que John Lennon e Paul McCartney se conheceram. Trabalha como jornalista desde março de 1979.
Trailer do documentário “Sweet Blues”, sobre Mike Bloomfield:
Fontes e +MAIS:
WALTERSON SARDENBERG S, muito obrigado por escrever e publicar sobre Mike, sou fã deste guitarrista. Nunca vi nem ouvi ninguém tocar como ele… Ele extrai da guitarra blues uma melancolia fora descomunal, não dá pra descrever, só ouvindo mesmo, aliás, a música só existe enquanto está sendo executada mesmo… O primeiro album que ouvi dele foi um instrumental : blues, gospel and regtime… https://www.youtube.com/watch?v=q3frBhCumgs
Utiliza muito slide, a música Blues for Norman. Minha favorita do album.
Walterson, muito obrigado por partilhar destas informações em português e pela homenagem a este grande músico, uma verdadeira joia escondida. Abraço!