Há 250 anos… dia 15 de setembro de 1765.
POR CAIO ANDREUCCI *
“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”
Em 15 de setembro de 1765, há 250 anos, nascia Bocage. Se talvez para nós soe como apenas mais uma em nosso rol diário de efémerides, para os moradores de Setúbal, em Portugal, a presente data é motivo de orgulho e comemorações. Lá, feriado municipal, é Dia de Bocage e Dia da Cidade – ao contrário de muitas cidades portuguesas, que comemoram seu dia junto a dias de santos.
Setubalense, Maunel Maria de Barboa l’Hedois du Bocage é hoje conhecido por sua poesia desbocada, o que lhe vale os epítetos de irreverente e libertino, ou ainda, de “fura-vidas”, humorista e pornógrafo. Não obstante qual dessas características seja a predominante, o poeta foi, em sua vida e obra, um crítico ferrenho de sua época. Teve uma vida de aventuras, atribulações e boêmia, por sua conduta e escrita foi perseguido e preso diversas vezes, e já em vida adquiriu respeito e admiração nos meios literários. Considerado como um dos maiores representantes do arcadismo lusitano e um dos precursores da mordenidade em seu país, figura entre Luís de Camões e Fernando Pessoa como um dos maiores nomes da poesia portuguesa.
No dia de hoje, em Setúbal, Porto, Lisboa e outras cidades portuguesas, inicia-se a programação de comemoração de seu 250º aniversário, que se estenderá por um ano e terá fim no 15 de setembro de 2016. O intuito dos debates, estudos, reedições, leituras, encenações, intervenções e exposições que se iniciam é, nas palavras de um dos organizadores, “colocar Bocage no seu devido lugar na literatura e na cultura portuguesas”. Embora certamente grandioso, para alguns, essa efémeride é a oportunidade de “inverter a imagem que, desafortunadamente, perdura junto de sectores da população menos informados”, em que vigora a imagem do Bocage “anedótico”, da poesia pornográfica e circunstancial.
O que esse tipo de leitura ignora são as condições em que o poeta português escreveu. No fim do século XVIII, frequentador da vida noturna, entusiasta dos ideais da revolução francesa, seus poemas francamente eróticos e/ou críticos eram um tapa na cara da moral de seus contemporâneos. Quem se vangloriava em público da “porra tamanha”, que “não é porra capaz de foder gente”, mas “dada os burros”, e menosprezava as convenções sociais e orgulhoso exclamava que “comeu, bebeu, fodeu, sem ter dinheiro”, claramente não é de acarinhar o público conservador da época. Infelizmente, o que resta até hoje é o substrato vulgar de seus poemas. Numa época em que o corpo não podia ser elogiado, a publicação de seus poemas eróticos representa uma transgressão dos valores e do beletrismo que diz respeito e é necessário ao desenvolvimento das artes e da sociedade.
Vivendo em extrema pobreza, Bocage morreu aos 40 anos de aneurisma. Mesmo tendo renegado a parte “má” de sua produção, após sua internação no Real Hospício das Necessidades e uma breve passagem no Convento dos Beneditinos, e dono de uma boa reputação entre literatos, morreu em situação precária. Como afirmaram, foi um “poeta e pessoa da transgressão”, e sua vida e seu fim são sintomáticos do espírito que anima os poetas até os dias de hoje. “Mais propenso ao furor do que à ternura”, Bocage, abalando a literatura convencional, incomodou, incomoda, e ainda incomodará muita gente.
* Caio Andreucci, 24, poeta e editor independente.
Confira alguns dos poemas de Bocage:
“O Leão e o Porco”
O rei dos animais, o rugidor leão,
Com o porco engraçou, não sei por que razão.
Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna
(A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna):
Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes,
Poder de despachar os brutos pretendentes,
De reprimir os maus, fazer aos bons justiça,
E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça;
Mas em vão, porque o porco é bom só para assar,
E a sua ocupação dormir, comer, fossar.
Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria,
Soltavam contra ele injúria sobre injúria
Os outros animais, dizendo-lhe com ira:
«Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!»
E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais,
Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais!
Dos filhos para o génio olhai com madureza;
Não há poder algum que mude a natureza:
Um porco há-de ser porco, inda que o rei dos bichos
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos.
“XLIV [SONETO DA PORRA BURRA]”
Eram oito do dia; eis a creada
Me corre ao quarto, e diz “Ahi vem menina
Em busca sua; faces de bonina,
Olhos, que quem os viu não quer mais nada”.
Eis me visto, eis me lavo, e esta engraçada
Fui ver incontinenti; oh céus! que mina!
Que breve pé! Que perna tão divina!
Que mamminhas! que rosto! Oh, que é tão dada!
A porra nos calções me dava urros;
Eis a levo ao meu leito, e ella rubente
Não podia soffrer da porra os murros;
“Ai!… Ai!… (de quando em quando assim se sente)
Uma porra tamanha é dada aos burros,
Não é porra capaz de foder gente”.
“II [SONETO DO EPITAPHIO]”
La quando em mim perder a humanidade
Mais um daquelles, que não fazem falta,
Verbi-gratia — o theologo, o peralta,
Algum duque, ou marquez, ou conde, ou frade:
Não quero funeral communidade,
Que engrole “sub-venites” em voz alta;
Pingados gattarrões, gente de malta,
Eu tambem vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada edosa
Sepulchro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitaphio mão piedosa:
“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro”.
Bocage, in “Bocage, o desboccado; Bocage, o desbancado”
“Autorretrato”
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Fontes:
– Público
– TSF
– Estadão
– Expresso
– Bocage