Há 10 anos… dia 16 de setembro de 2005.
POR LUCAS ANDREUCCI *
Máfia. Palavra a mesclar medo e admiração. Sonho de meninos e terror de homens. Nas artes, consagrou diretores de cinema e filmes como a trilogia O poderoso chefão, de Francis Ford Coppola, Os intocáveis, dirigido por Brian de Palma e, mais recentemente, Os infiltrados, consagrando uma vez mais Martin Scorcese; conferiu também notoriedade a autores de livros, pontuando aqui o sucesso obtido por Gomorra, cujos maiores encômios ao autor Roberto Saviano não advieram da crítica, incumbindo-se antes da homenagem à própria máfia Napolitana Camorra nas páginas retratadas, a qual colocou a prêmio a cabeça do escritor devidos às revelações contidas na obra. Certo é que persiste ainda hoje aura de misticismo a rondar tais sociedades criminais, seus membros alçados ora à condição de heróis na resistência ao arbítrio e excessos do Estado, ora de substitutos sociais frente à carência da população, ou ainda observados como delinquentes impiedosos, cujo extermínio dos antagonistas é recurso rotineiro.
A origem das máfias, isso é indiscutível, encontra abrigo na Itália. Dizem alguns deitar raízes na obstinação dos sarracenos (muçulmanos) em cederem de volta aos normandos o controle da Sicília no distante século IX. Daí a etimologia no vocábulo árabe mahyas, significando “refúgio” segundo alguns estudiosos, ou concomitantemente exprimindo também aquele indivíduo trivalente: orgulhoso, temido e arrogante.
Mais proximamente, traça-se linha genealógica na mesma Sicília, onde, a partir de meados do século XIX, instalou-se oposição organizada ao monarca espanhol Francisco II, último a reinar na ilha antes da incorporação à Itália. Senão das máfias como um todo, ao menos da Camorra parece ser este o embrião. Construção global mais aceita, no entanto, extrai as primeiras estruturas mafiosas da Idade Média, quando do fortalecimento da resistência de arrendatários aos desmandos de senhores feudais, tomando destes o monopólio das terras e estabelecendo taxas de proteção aos novos cultivadores.
Independentemente do histórico, foi no século XX que assumiram as máfias os contornos hoje vislumbrados. Têm por características principais estrutura hierárquica rígida e regras não escritas mas de obediência estrita, destacando-se a omertà (lei do silêncio), cuja violação resulta em morte. Aliás, o monopólio da violência e sua consecução são recursos recorrentes à manutenção do poder.
Enraizadas na sociedade, muitas de tais organizações criminosas se substituem a governos débeis no controle de ruas, bairros, cidades e regiões. Formam um Estado paralelo, verticalmente organizado e mantido pela violência, dizimando oponentes e impondo regras não escritas aos membros e à população. Nesse cenário e no ocaso do século passado e início deste, fortaleceu-se a Camorra como uma das principais estruturas do gênero. Chefiada por Paolo di Lauro, notabilizou-se pela violência na região de Nápoles e pela extensão global de suas conexões. Recentemente houve no Brasil a prisão de importante figura da organização.
Durante guerra aberta contra dissidentes, recrudescida pouco mais de uma década atrás, cometiam-se assassinatos à luz do dia e à vista de todos. Os balanços indicam que apenas no ano de 2004 foram 128 homicídios encomendados pela organização, que movimentava diariamente mais de € 500.000,00. O conflito vitimou não só os mafiosos, mas as próprios cidadãos, invocando intervenção mais dura do Estado.
Diversas operações coordenadas por segmentos do Estado, assumindo robustez a partir do ocaso de 2004 com a prisão do filho de Paolo di Lauro, provocaram profundo abalo na Camorra. O enfraquecimento culminou, há exatos 10 (dez) anos, com a prisão do líder. Quase certo é que o encarceramento somente se tornou possível devido à delação premiada de um camorrista arrependido (pentiti). O império criminoso, no entanto, não sucumbiu. Foi assumido por outro dos filhos de Paolo, persistindo também a denominada “guerra de secessão” pelo controle das atividades criminosas na região.
Inobstante a história particular da Camorra e de seu líder, vale dizer que as máfias italianas e o respectivo combate influenciaram sobremaneira o Direito Brasileiro, embora poucos reflitam sobre a particularidade. Explica-se: prova maior para a prisão e condenação de líderes como Paolo di Lauro advém do relato dos pentiti, arrependidos convertidos em delatores premiados. Tal modalidade de colaboração com a justiça é essencialmente a mesma a hoje proliferar nos tribunais e noticiários políticos nacionais. Mas a moralidade e legalidade da delação premiada, juízo de meios e fins, mais os contornos sociais e jurídicos da questão, são assunto para uma outra oportunidade.
* Lucas Andreucci é pós-graduado em direito penal e processual penal pela PUC-SP e mestrando em direito penal pela USP. Exerce com paixão a advocacia criminal. Apesar disso, acredita que é boa gente.
Assista ao trailer do filme Gomorra:
Fontes:
Sites:
– Estadão
– Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanni Falcone
Livros:
– Delação premiada no combate ao crime organizado. GUIDI, José Alexandre. Franca: Lemos e Cruz, 2006.
– Gomorra. SAVIANO, Roberto. São Paulo: Saraiva.
– O Estado e o crime organizado. MINGARDI, Guaracy. São Paulo: IBCCRIM, 1998.
– Organização criminosa: nova perspectiva legal. PITOMBO, Antônio Sérgio Altieri de Moraes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.