27 de novembro de 1916

POR TIAGO MALI*
Sejamos claros: este post parte de uma, digamos, fraude. O centenário do samba que comemoramos durante todo o ano de 2016 tem como marco o que seria a primeira canção do tipo, “Pelo Telefone”, em cujo registro na Biblioteca Nacional se lê “27 de novembro de 1916” e “Donga e Mauro de Almeida”. Apesar disso, os principais estudiosos da época indicam que: a) “Pelo Telefone” foi composta como tango, b) não é de Donga e c) tínhamos muitos sambas gravados antes da composição.
Não façamos também disso um carnaval. O modernismo brasileiro antecede a Semana de 22, New Orleans tocava jazz (na época “jass”) bem antes dos discos fundadores de 1917 e o “Século das Luzes” (o 18) se inicia décadas após a morte de grandes iluministas. Sem um pouco de licença poética não teríamos datas para celebrar muita coisa importante e este blog seria menos divertido.
Já que não iremos nos ater ao aspecto de “estação primeira” da suposta música inaugural, abram alas para desfilarmos um pouco sobre as velhas guardas que inauguraram o gênero e – por que não? – sobre como “Pelo Telefone” de fato surgiu e contribuiu com a popularização do samba.

“O samba na realidade não vem do morro nem lá da cidade”
Não faltam testes de DNA com “provas” e autoproclamados pais da criança, mas é complicado determinar o berço do samba. Lá se ia metade do século 19, o Brasil era chamado de Império, e danças negras, especialmente o lundu, começaram a se popularizar, ao mesmo tempo, em várias províncias. Escravos da Angola e do Congo cantavam e dançavam levantando os braços, estalando os dedos e dando umbigadas, acompanhadas de palmas. Samba, para os autores da época, era o nome dado a essas danças e festejos repletos de percussão africana, que em cada canto do Brasil iam desenvolvendo características próprias.
Só pra ficar em algumas dessas danças, aí vai uma lista do dicionário Cravo Albin: “Samba-lenço, Samba-rural, Tiririca, Miudinho e Jongo (São Paulo); Tambor-de-crioula ou Ponga (Maranhão); Samba-corrido, Samba-de-roda, Bate-baú, Samba-de-Chave e Samba-de-barravento (Bahia), Bambelô (Rio Grande do Norte), Coco (Ceará), Trocada, Coco-de-parelha, Samba de coco e Coco-travado (Pernambuco) e Partido-alto, Miudinho, Jongo e Caxambu (Rio de Janeiro)”.
Até aqui não se usava a palavra para definir um gênero musical, mas uma festa. Se diziam que os negros faziam samba em determinado momento, não significava que compunham obras de um gênero musical específico, mas que dançavam com cantos e um batuque típico daquela região.
É óbvio, no entanto, que muitos desses ritmos traziam o embrião do samba. Daí vem a noção de Vinícius e outros de que ele nasceu na Bahia de 1860, com o samba-de-roda do Recôncavo, e que foi apenas aperfeiçoado no Rio. Há uma eterna e infrutífera briga com os cariocas sobre isso, mas não entraremos nesse “terreiro pantanoso”. Vale destacar, porém, que, na mesma época, outros festejos importantes para a consolidação do gênero floresciam em muitas partes do Brasil.

A Lapa de outrora
Da discussão para o consenso: todos concordam que foi no Rio do final do século 19 que o gênero adquiriu seus traços mais reconhecíveis. Músicos da Cidade Nova, pequena parte da cidade também conhecida por “Pequena África”, moldaram o ritmo e deram a ele as características que conquistaram as massas nas décadas seguintes. Isso não aconteceu lá por acaso.
Metade da população do Rio em 1850 era de negros escravos, o que fincou raízes de cultura afrodescendente entre os cariocas. Isso foi determinante, por exemplo, para que músicos de classe média baixa em 1870 incorporassem elementos, o ritmo e fraseados dessa cultura afro-carioca ao compor e tocar peças instrumentais de gêneros europeus. A mistura virou choro que, de origem nada controversa, nasceu ali mesmo, antes do samba.
A população do Rio explodiria até o fim do século com a vinda de migrantes. Eram escravos recém-libertos, fugitivos da guerra de Canudos, ex-militares, gente de tudo quanto é canto, especialmente da Bahia, de Pernambuco e de São Paulo. Vinham atrás de trabalho no centro político, social e cultural do País, e começavam a se fixar em locais como a Cidade Nova. Em 1890, mais de meio milhão de pessoas habitavam o Rio; metade nascida fora dali.
A bagagem desse pessoal de fora se junta às raízes culturais negras já estabelecidas na cidade. Músicos de classe média baixa que tocavam gêneros europeus se misturam aos batuques, gerando o caldeirão cultural que cozinhou o samba na passagem do século 19 para o 20. Tinhorão, um dos maiores estudiosos de música popular no Brasil, sustenta que o samba enquanto gênero musical surge ali, da fusão de polca, maxixe e choro com o ritmo de percussão dos negros.
A casa da Tia Ciata, uma das várias “baianas festeiras” da Cidade Nova serve de metáfora para esse encontro. Na sala realizavam-se bailes “respeitáveis” de polca, ritmo então apreciado por parte da elite; nos fundos, partido alto, samba-de-roda (afinal, Ciata era do Recôncavo) e batuques rurais religiosos. Como hoje, no partido alto, vários músicos se reuniam sobre um refrão e ao som de palmas, violão e percussão, versavam livremente, criando na hora uma série de estrofes. Os maiores compositores do início do samba, como Sinhô, João da Baiana e Donga, batiam mais ponto lá que meus parceiros de PUC no Ó do Borogodó.
Muitos autores consideram as baianas festeiras da cidade nova, mais que qualquer homem, como as verdadeiras “mães do samba”. “Foi na casa da Tia Ciata que surgiu ‘Pelo Telefone’; na casa de Tia Sadata, na Pedra do Sal, surgiu o Rancho das Flores; Tia Perciliana era mãe do ritmista João da Baiana, e Tia Amélia, mãe do chorão e sambista Donga”, lembra o historiador André Diniz. Nunca entendeu o porquê de tanto destaque para a Ala das Baianas nas escolas de samba? Pois é, por causa dessas tias.

O samba já foi de arruaça
Era começo do século 20, a casa da Tia Ciata fervilhava com festas que duravam dias. Estava em alta, no carnaval e nos teatros de revista, música popular de fundo folclórico com motivos do Nordeste. Em 30 de abril de 1916, e a peça o Marroeiro fazia sucesso com o seguinte refrão, do cearense Catulo da Paixão:
Olha a Rolinha
Sindô, sindô,
Mimosa flor,
Sindô, sindô,
Presa no laço,
Do meu amô
A partir daqui, a história é contada por Almirante, que conviveu e tocou com boa parte dos grandes nomes daquele início de século (incluindo Donga, Pixinguinha e Noel Rosa, com quem tinha um grupo de samba). Almirante, o maior pesquisador dos primórdios do samba, foi o primeiro a fazer entrevistas sistemáticas com os sambistas, reunir documentos e dirimir dúvidas sobre a autoria das primeiras peças musicais e a biografia de sambistas, além de resgatar inúmeras composições da época.
Conta Almirante que o refrão da Rolinha aí de cima foi cantado pelo resto de 1916 na rua, nos teatros, nos cabarés e, é claro, na casa da Ciata. Numa dessas festas, seis participantes de um partido alto juntaram ele a outras estrofes que estavam correndo a roda e criaram o tango “Roceiro”. Eram eles: Hilário Jovino, Mestre Germano, a própria Tia Ciata, João da Mata, Sinhô e Mauro de Almeida, o autor dos versos.
A composição foi apresentada no Cine-Teatro Velho, na Tijuca, em 25 de outubro. Era época em que os aparelhos telefônicos ganhavam popularidade no Rio, e a música seria lembrada pela segunda linha dos versos escritos por Mauro de Almeida, “pelo telefone”. Com o sucesso instantâneo, uma nova apresentação foi feita para a imprensa em 3 de novembro.
Donga, que tocava de ouvido e não sabia escrever partitura, se aproveitou do êxito da composição e a cadastrou como um samba na Biblioteca Nacional, obtendo o seu registro em 27 de novembro. No registro, ele não tinha colocado sequer o nome do jornalista Mauro de Almeida (o Peru, de “O Peru me disse”), responsável pela letra, incluído apenas anos depois. Vários deles, é claro, ficaram loucos da vida e se afastaram de Donga. De onde surgiu a paródia:
Pelo telefone
A minha boa gente
Mandou avisar
Que meu bom arranjo
Era oferecido
Para se cantar
Ai, ai, ai
Leve a mão na consciência,
Meu bem
Ai, ai, ai
Mas porque tanta presença
meu bem?
O que caradura
De dizer nas rodas
Que esse arranjo é teu
E do bom Hilário
E da velha Ciata
Que o Sinhô escreveu
Tomara que tu apanhes
Para não tornar a fazer isso
Escrever o que é dos outros
Sem olhar o compromisso
Essa manobra digamos, astuta, de Donga não era exatamente uma exclusividade. Versava na época a máxima atribuída a Sinhô (ironicamente um dos autores de “Pelo Telefone”): “samba é que nem passarinho, é de quem pegar”.

O samba vai esquentar é agora
Após essa longa leitura (se é que alguém chegou até aqui), podemos concluir então que o primeiro samba gravado foi uma composição coletiva, dessas de partido alto, certo? Mais ou menos. Seria isso, se ao menos “Pelo Telefone” fosse o primeiro samba gravado. Os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no entanto, encontraram uma variedade bem grande de gravações já registradas como samba em séries de gravadoras que iam de 1908 a 1915.
Entre elas “Descascando o Pessoal”, “Urubu Malandro”, “Samba Roxo”, com Eduardo das Neves, “No Samba”, gravado por Pepa Delgado e Mário Pinheiro e “Em Casa de Baiana”, com o Conjunto da Casa Faulhaber, identificada na abertura como “samba de partido-alto”.
Nenhuma delas, no entanto, atingiu o estrondoso sucesso de “Pelo Telefone”, que consolidou o gênero e o “calibrou” para se firmar de vez no gosto popular com a chegada das rádios ao Brasil na década seguinte. Se a maior parte das características de primazia da música é contestada por estudiosos, foi a partir dessa canção, e das suas inúmeras versões e paródias no carnaval de 1917, que o samba esquentou.
* Tiago Mali é sambista, santista e jornalista. Nas (cada vez mais escassas) horas vagas, arranha cordas de aço de um minúsculo braço.
“Pelo Telefone”:
Referências usadas na pesquisa para este texto:
– Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir (André Diniz da Silva)
– No Tempo de Noel Rosa – O Nascimento do Samba e A Era de Ouro da Música Brasileira (Almirante)
– Pequena história da música popular- Tinhorão
– Música popular: um tema em debate (José Ramos Tinhorão)
– Dicionário Cravo Albin – verbete samba
– Música popular e poesia no Brasil: um breve percurso histórico (Luciano Marcos Dias Cavalcanti)
– Entre pátrias, pandeiros e bandoneones (Andreia dos Santos Menezes)
+MAIS:
– www.uol