O assassinato de Vladimir Herzog

Há 40 anos… dia 25 de outubro de 1975.

POR NETA MELLO*

Nas últimas manifestações contra o atual governo federal, em São Paulo e no Rio de Janeiro, algumas pessoas portavam cartazes pedindo a volta da ditadura militar. Ao ver fotos desses cartazes, um frio sobe por minha espinha.

Como o povo pode esquecer o que foram os vinte e um anos da ditadura militar no país? O que os adolescentes aprendem nas escolas? O Brasil não tem mesmo memória?

Não é porque ex-militantes, a maior parte estudantes universitários na época, se envolveram em atos de corrupção e deixaram de pensar no coletivo, que todos que lutaram pela liberdade no País estejam no mesmo saco. De lixo.

O frio que sinto na espinha me faz lembrar de outra foto. Forte. Um homem enforcado com um cinto pendurado em uma grade presa a tijolos de vidro, pernas dobradas. Figura insólita. Tentava provar que a pessoa cometera suicídio nas dependências do DOI-CODI de São Paulo. A foto foi divulgada tempos depois. O fotógrafo Silvado Leung Vieira foi chamado às dependências do órgão de repressão para fazer uma foto e cair fora, sem nada perguntar, ameaçado de que não poderia vazar o que acabara de ver. O rapaz tinha 22 anos. Foi a primeira, mas não a última vez em que foi levado ali para fotografar casos de tortura e suicídio. Não fez perguntas. Viu a notícia da morte do jornalista nos jornais alguns dias depois e soube quem havia retratado. Silvado mora atualmente em Los Angeles.

Outubro de 1975. Universidade Católica de São Paulo. Meio da tarde. Um grupo de alunos de vários cursos passa de classe em classe convocando todos para uma passeata de Perdizes até a Praça da Sé. Mataram Vladimir Herzog, 38 anos, escolhido por José Mindlin, então secretário da Cultura, para dirigir o jornalismo da TV Cultura. Eu estava grávida do primeiro filho. Sim, tive medo de ser pisoteada. De levar cacetada dos militares a cavalo. Não fui. Meu filho faz quarenta anos no ano que vem. Mais velho do que Vladimir Herzog naquele dia. Preso, torturado e morto pelo bando de Sérgio Paranhos Fleury, da Delegacia de Investigações Criminais (DEIC).

Quatro anos antes, o pai de uma amiga do primário desaparecera. O nome? Rubens Paiva. Como Herzog, foi procurado em casa para prestar depoimentos. No Rio de Janeiro, acompanhou os militares e nunca mais voltou. Herzog, em São Paulo, foi procurado na sede da TV Cultura e se apresentou na manhã seguinte, na Rua Tomás Carvalhal, 1030, acusado de ser militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Nunca mais voltou.

Os dois deixaram mulher e filhos. Em janeiro de 1971, sumiram com o corpo de Paiva. A família nunca pôde enterrá-lo nem receber um atestado de óbito. Só muitos anos depois.

No caso Herzog, a foto forjada era um atestado de suicídio. O corpo foi devolvido à família e velado no Hospital Albert Einstein. A família não pôde abrir o caixão ou pedir autópsia. Vale dizer que nenhum jornal ousou questionar o suicídio, como pode ser visto no noticiário nos dias seguintes ao assassinato.

No dia 27 de outubro, no obituário da Folha de São Paulo, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, presidido por Audálio Dantas e Fernando Pacheco Jordão, publicou anúncio da morte do colega e amigo Vladimir Herzog, com convite para o sepultamento. A notícia se espalhou nas redações de jornais em São Paulo e muitos jornalistas cruzaram os braços em protesto.

Nada havia saído nos jornais sobre o assassinato. Outra coisa que as pessoas não se lembram mais. O tempo do cale-se. “Cálice” – cantavam Milton Nascimento e Chico Buarque. Companheiros de Vlado na prisão, também brutalmente torturados, confirmaram a farsa do suicídio. Como Paulo Markun, que escreveu Meu querido Vlado. Ou Rodolfo Konder em Brasil: Nunca Mais.

[…] De lá podíamos ouvir nitidamente os gritos, primeiro do interrogador e, depois, de Vladimir e ouvíamos quando o interrogador pediu que lhe trouxessem a “pimentinha” e solicitou ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio, e os gritos de Vladimir se confundiam com o som do rádio […] A partir de determinado momento, o som da voz de Vladimir se modificou, ficou abafado, como se lhe tivessem posto uma mordaça […] Que quando iniciou-se a tortura de Vladimir o declarante, estando na sala ao lado, chegou a ouvir sons de pancadas que lhe eram desferidas […]

No cemitério israelita, o corpo de Vlado não foi sepultado na área separada para os suicidas, como determina a religião judaica. O rabino Henry Sobel, como todos ali presentes, não aceitaram a versão oficial e o atestado de óbito do médico Harry Shibata entregue pelos militares. Ato de rebeldia e de fé

Chamaram o governo militar de mentiroso com um enterro digno. O governador Paulo Egydio Martins, que discordava do governo militar em muitos aspectos, indignou-se com a prisão e morte de Herzog. Afinal, o jornalista e professor trabalhava na TV do Estado de São Paulo!

O cardeal Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor James Wright se reuniram para promover um culto ecumênico no dia 31 de outubro. A Catedral da Sé com lotação completa e cerca de 8 mil pessoas na praça. Lembrando que toda e qualquer manifestação era proibida no período militar.

No dia seguinte, mesmo censurados, os jornais publicaram fotos e notícias do povo nas ruas de São Paulo. O presidente Geisel, segundo historiadores, se enfureceu com o comando militar da região.

Choraram Marias e Clarices, na belíssima letra de Aldir Blanc cantada por Elis Regina. “O bêbado e a equilibrista” marcou esse tempo vergonhoso, em uma demonstração de que parte da população do milagre econômico não era tão alienada como queriam os militares. Entendeu a mensagem dessa e de tantas outras manifestações artísticas – músicas, peças de teatro, livros, filmes. Rico momento de criatividade que escapava da censura.

Em janeiro de 1976, o operário Manoel Fiel Filho também cometeu “suicídio” nas dependências do DOI-CODI de São Paulo. O mesmo fotógrafo foi chamado para o “retrato”, que não chegou a ser publicado.

O presidente Geisel exonerou o general Comandante do II Exército, Ednardo D’ Ávila Mello. Demonstração de que prisões e torturas não seriam mais toleradas. Ou facilmente toleradas. Era o esboço da transição lenta, gradual e irrestrita para a democracia no Brasil.

Em 1979, a anistia aos presos políticos trouxe de volta Dulce Maia, Betinho, Fernando Gabeira, Leonel Brizola, Gregório Bezerra, Luiz Carlos Prestes, Miguel Arraes, entre outros.

Mas essa história fica para outro dia… Porque todo dia é histórico.

* No livro O silêncio faz parte da resistência, uma ficção sobre o período, Neta Mello resgata histórias e personagens verdadeiros da fatídica ditadura militar.

Documentário “Vlado – 30 anos depois”:

Fontes e +MAIS:

Acervo Estadão

Wikipédia

– vladimirherzog.org

– g1.globo.com

– ebc.com.br

– memoriasdaditadura.org.br

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