Há 1 ano… dia 16 de julho de 2014.
Johnny B. Goode em pessoa
POR WALTERSON SARDENBERG Sº*
Um artigo publicado em 1968 na revista Rolling Stone – então ainda um tablóide — relatava que havia no Texas um sujeito albino, com longos cabelos, “tocando uma das mais endiabradas guitarras de blues que você já ouviu”. Steve Paul, proprietário da casa noturna The Scene, em Nova York, leu a matéria e resolveu conferir. Viajou até Austin, atravessando meio país, só para ouvir o guitarrista. Johnny Winter, o tal músico, tinha 25 anos. De fato, tocava uma guitarra flamejante. Os solos tinham um “ataque” personalíssimo, rápido e afiado, com muitas notas — mas sem exibicionismo técnico. Johnny era o próprio Johnny B. Goode da profética letra de Chuck Berry, um garoto caipira que arrebentava nas seis cordas. Além disso, compunha e cantava blues como se fosse um negro das plantações de algodão, com uma voz poderosa e roufenha. Sem contar que, fisicamente, era uma figuraça. Muito alto. Muito magro. Muito alvo.
Steve Paul, que de bobo não tinha nada, o contratou na hora para uma série de shows no The Scene. Tornou-se também seu empresário. Logo a Columbia Records contratava não só Johnny Winter como o irmão mais novo dele, o multi-instrumentista Edgar Winter, um cobrão nos vocais, no saxofone e nos teclados — e também albino. Para ter o guitarrista, a gravadora pagou US$ 600 mil de adiantamento. Uma fortuna na época.
Filhos de um saxofonista e tocador de banjo e de uma pianista, os irmãos Winter, nascidos na cidade texana de Beaumont, tinham sólida formação musical. Haviam gravado um compacto-simples, “School Day Blues”, para o pequeno selo Dart, de Houston, quando Johnny tinha 15 anos. E Edgar, apenas 13. Eis o nome da banda: Johnny and the Jammers.
Ao ouvir a história de que a Columbia lançaria o primeiro LP de Johnny Winter, a Imperial Records antecipou-se e botou na praça The Progressive Blues Experiment, um disco montado com demos que o guitarrista gravara pouco antes. Uma curiosidade: quando o álbum foi relançado, já nos anos 1980, um crítico da Folha saudou-o como novidade — e citou até Freud. Mas o primeiro LP de Johnny, a rigor, é o de capa de fundo preto com o seu rosto no centro. Um clássico, que vendeu uma barbaridade. Tem por título apenas Johnny Winter. A formação do grupo que acompanha o guitarrista também é bem simples: apenas baixo e bateria — à exceção das faixas em que o mano Edgar comparece.
Tão logo saiu o disco, Johnny participou do Festival de Woodstock. Por que não aparece nem no filme e nem nos dois álbuns? Uma questão de contrato. Na época, porém, especulou-se que a Warner, responsável pelo documentário, considerou Johnny “feio demais” para aparecer na fita. Vai saber. Janis Joplin também cantou em Woodstock e não entrou no filme. Assim como o Creedence Clearwater Revival e outros bambas.
Second Winter, de 1970, o segundo trabalho de Johnny, como o nome antecipa, é um escândalo. Não só por ter muito mais peso, em rocks animados, em relação ao primeiro. Mas também por ser um álbum duplo com apenas três faces gravadas. Isso era então uma novidade total no rock. A Columbia publicou anúncios em que explica que o material era tão bom que resolveu lançá-lo inteiro — embora não fosse suficiente para completar o segundo lado B. À boca pequena, no entanto, comentou-se que Johnny interrompera as gravações por um problema que se tornaria crônico: sua íntima ligação com a heroína.
Por pouco, sabe-se hoje, John Dawson Winter III — seu pomposo nome de batismo — não se torna, sem pompa nenhuma, mais um roqueiro famoso a morrer aos 27 anos. Salvou-o uma longa internação. De volta às ruas, surpreendeu o mundo ao apresentar sua nova banda, o Johnny Winter And. A Via Láctea ficou pasma. O grupo era nada mais nada menos que os McCoys: o guitarrista Rick Derringer, o baixista Randy Jo Hobbs e o baterista Randy Zehringer, irmão de Rick. Bem, os McCoys não passavam, até então, de uma banda pop e fuleira. Seu maior sucesso, “Hang on Sloopy”, um surf rock, virou “Pobre Menina” em sua versão brasileira, gravada por Leno e Lílian. Era como se Caetano Veloso anunciasse que sua nova banda de apoio seria o grupo Dominó. Ou o Jota Quest.
O quê poucos sabiam: os McCoys, na realidade, tocavam muito (o que não é o caso do Dominó nem do Jota Quest). Mais: Rick Derringer compunha rocks de altíssima voltagem e qualidade. Caso de “Rock and Roll, Hoochie Koo”, um clássico instantâneo — que o próprio Derringer regravaria, mais tarde, em seu disco solo de estreia, All American Boy. Esta faixa seria um dos sucessos do único (e fabuloso!) álbum de estúdio do Johnny Winter And —, que também tem uma versão arrepiante de “No Time to Live”, de Steve Winwood e Jim Capaldi, do segundo LP do Traffic.
Com o extraordinário Bob Caldwell, futuro membro do Captain Beyond, na bateria no lugar de Randy Zehringer, o grupo lançou um segundo e último álbum, Johnny Winter And… Live. Um dos melhores discos ao vivo do rock. Sem favor nenhum. Poucos guitarristas tinham, nos anos 1970, a energia de Johnny Winter no palco. Raríssimos. Os duelos que arma com Rick Derringer são faiscantes e fascinantes. Em especial, na faixa “Good Morning Little School”. A heroína, mais uma vez, no entanto, quase arrasta Johnny do planeta. Derringer e o baixista passaram a tocar na White Trash, a banda arrasa-quarteirão de Edgar Winter. Não era desfeita. Mas necessidade. Precisavam trabalhar. Johnny estava, mais uma vez, internado. Voltou ao palco justamente em um show da Edgar Winter’s White Trash. Foi um retorno triunfal. Edgar anuncia: “Tenho uma surpresa para vocês esta noite”. Johnny entra e ataca de “Rock and Roll, Hoochie Koo”, secundado por Derringer. A gravação aparece no ótimo álbum duplo ao vivo Roadwork, da White Trash.
Foi Rick Derringer o autor do rock que daria o nome ao novo disco de Johnny. Também produziu a bolacha. Alguns diriam que o título do LP é emblemático. Esta palavrinha, todavia, é feia, batida e pedante. Justamente o contrário do sensacional álbum Still Alive and Well. Traduzindo: “Ainda vivo e bem”. Johnny voltou estraçalhando. Gravou duas de Jagger e Richards: “Let it Bleed” e “Silver Train”, esta última composta especialmente pela dupla para o guitarrista. Mais tarde, Johnny seria o primeiro a lançar “Rock And Roll People”, de John Lennon. A gravação do autor só apareceria seis anos após a morte do beatle
Se os dois álbuns seguintes de Johnny (Saints and Sinners e John Dawson Winter III) não chegaram a entusiasmar, 1976 foi revigorante. O guitarrista lançou naquele ano dois detonantes discos ao vivo. O primeiro, Captured Live, tem um único blues. Todas as demais cinco faixas são rocks, incluindo “Rock And Roll People” e, possivelmente, a melhor gravação de “Highway 61 Revisited”, de Bob Dylan. Para o lugar de Rick Derringer, o esperto Johnny convocou outro guitarrista de primeira, Floyd Radford.
Já o segundo álbum ao vivo é uma parceria com o mano velho de guerra. Johnny and Edgar Winter Together tem o repertório que os irmãos ouviam em casa sem parar, na infância e adolescência, enquanto os colegas brincavam nas ruas no verão. Era a compensação dos meninos albinos que não podiam submeter a pele ao sol causticante do Texas.
A partir daí, a vendagem dos álbuns de Johnny na Columbia desabou. Vieram os tempos do punk, da discothèque e da new wave. Tempos pouco alentadores para um blueseiro. Os discos de Johnny já saíam pelo selo de segunda linha da gravadora, o Blue Sky. Sua reputação na companhia estava em baixa. Ainda assim, entre 1977 e 1981, Johnny produziu na Columbia quatro históricos LPs para o seu maior ídolo, Muddy Waters. São discos que revelam o carinho de um filho por um pai generoso e amoroso. Para muitos, os melhores do Velho Barreiro — ou melhor, do grande Águas Lamacentas.
A situação na Columbia, seja como for, tornou-se tão desanimadora que, no decorrer de quatro anos — entre 1980 e 1984 —, Johnny não lançou qualquer álbum com seu nome. Fala-se, também, de um retorno às drogas. De um jeito ou de outro, ele reapareceu em um selo de blues, o Alligator, de distribuição reduzida e pouca projeção internacional. Na capa do LP, Guitar Slinger, aparece sem camisa, exibindo as tatuagens do corpo magérrimo. A Alligator era pequena, mas não tola. Lançou uma camiseta de mangas compridas, reproduzindo as tattoos de seu novo contratado.
A partir de 1984, Winter passaria a gravar apenas em selos menores. De preferência, blues. E muito material acústico. Aprimorou ainda mais as técnica na slide guitar. Sua carreira passou a ser a de um músico de blues — e não um astro do rock. Johnny, aparentemente, não ligou para aquilo que alguns considerariam decadência. Quando esteve no Brasil pela primeira vez, tocou até no programa do Jô Soares. Ao retornar, em 2010, mostrou-se bastante abatido. Entrou no palco amparado. Não tocava mais de pé. Só sentado. Sua voz, embora ainda roufenha e característica, revelava-se agora frágil, esgarçada.
Os shows que deu no Via Funchal, em São Paulo, decepcionaram os velhos fãs. Nos números acústicos de slide guitar, Johnny B. Goode em pessoa ainda mandava bem. Nos números elétricos, contudo, perdera a agilidade, a rapidez e o pique. Estava com 66 anos. Muito coroa? Ora, Jeff Beck, que nasceu no mesmo ano, 1944, está no auge da carreira, aos 71 anos. Antes de morrer em um hotel de Zurique, na Suíça, aos 70 anos, em 16 de julho do ano passado, com complicações causadas por enfisema pulmonar, Johnny gravou dois álbuns, em que é homenageado por outros grandes guitarristas. Roots, de 2011, traz Warren Haynes e Derek Trucks, que tocaram juntos na Allman Brothers Band. Já Step Back, de 2014, conta com Eric Clapton e Joe Bonamassa.
O homem que tocava uma das guitarras mais endiabradas que você já ouviu merecia as homenagens. Johnny foi grande. E amava os blues como poucos. Raríssimos.
* Walterson Sardenberg Sº é jornalista desde 1978. Nasceu em um dia histórico: 6 de julho de 1957, em que Paul McCartney e John Lennon de conheceram.
Reportagem sobre a morte de Johnny Winter:
+MAIS:
– bbc.com
– time.com
– cnn.com
um monstro da guitarra