Há 10 anos… dia 20 de fevereiro de 2005.
Medo e delírio no Alto da Lapa
A conexão afetiva entre o pai do jornalismo gonzo, Hunter S. Thompson, e um colega de ofício brasileiro, pai do Davi
POR MARCELO PINHEIRO*
Minha primeira leitura de uma obra do jornalista americano Hunter S. Thompson, o antológico Las Vegas na Cabeça, deu-se em 1992, por recomendação do grande amigo César Alves, também jornalista, que me emprestou seu exemplar da primeira edição brasileira, lançada no País em 1984 pelo selo Anima. Dez anos mais tarde, Thompson estaria presente no episódio mais marcante da minha vida. Explico.
Sequer havia entrado na faculdade, mas eu empenhava grana do próprio bolso para produzir alguns fanzines musicais, e começava a nutrir paixão por alguns autores que elevaram a reportagem ao status de gênero literário com o chamado Novo Jornalismo, movimento surgido nos Estados Unidos, na década de 1950, que funde fato e ficção e atribui ao repórter o papel de observador, com livre arbítrio autoral para explicitar suas subjetividades – algo que, na verdade, já era praticado, de alguma forma, por mestres de décadas anteriores, como John Reed, conterrâneo de Thompson, autor do clássico Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo, originalmente lançado em 1919.
A inadvertida descoberta deste “novojornalista” em versão hardcore chamado Hunter S. Thompson foi antecedida pelas primeiras leituras que fiz de clássicos de autores como Norman Mailer, Tom Wolfe e Truman Capote. O contato com a trama tresloucada de Las Vegas na Cabeça (o livro foi reeditado, depois, pela L&PM, com a tradução do título original Medo e Delírio em Las Vegas) foi uma experiência arrebatadora e um momento divisor nas pretensões deste, então, aspirante à jornalista.
Em meio à grandiloquência da trama ambientada em Las Vegas, capital do hedonismo burguês, o livro retrata, com estilo único, ácido e implacável, a derrocada da contracultura americana no início dos anos 1970 e a falência do Sonho Americano, acentuada na década que se iniciava. Tudo isso embalado na suposta cobertura de uma corrida de Motocross e uma convenção de promotores públicos sobre o combate às drogas. Mas há quem não faça essa leitura do livro lançado pela revista Rolling Stone em 1971, em dois capítulos, e se deixe impressionar tão somente com a rotina de excessos químicos e lisérgicos dos personagens Raoul Douke e seu advogado, Dr. Gonzo – alcunha que, aliás, originou o subgênero do jornalismo literário de mesmo nome, tão vilipendiado por copiosos aspirantes a Hunter Thompson, sem o menor talento, espalhados ao redor do mundo.
Hoje faz dez anos que o cidadão Hunter Stockton Thompson, nascido em Louisville, no Kentucky, em 18 de julho de 1937, decidiu dar fim à própria vida, aos 67 anos, com um tiro de espingarda deflagrado contra a própria cabeça. Seu corpo foi encontrado em sua casa, em Aspen, no Colorado. Ao lado de Thompson, um bilhete advertia que o pai do jornalismo gonzo sofria de enorme depressão, agravada por um ciclo agônico de dores diárias, imposto após uma cirurgia na bacia, que havia feito pouco antes.
Sete anos antes do suicídio de Thompson, o cineasta Terry Gilliam, um dos craques do anárquico Monty Python, decidiu verter Las Vegas na Cabeça (perdoem, mas gosto muito do primeiro título brasileiro) para a tela grande. Os protagonistas da dupla de doidivanas do livro foram o ator Johnny Depp, grande fã de Thompson, que encarnou o alter-ego do escritor, Raoul Douke, e Benício Del Toro, no papel do advogado Dr. Gonzo.
Quando Medo e Delírio em Las Vegas chegou aos cinemas do Brasil tratei o lançamento com indiferença, depois de ouvir alguns comentários negativos de amigos confiáveis, que consideraram pesada a mão do diretor, no trato da questão drogas. Em 9 de maio de 2002 (o leitor logo saberá por que é impossível esquecer a data) decidi enfim dar uma chance a Gilliam, Depp e Del Toro. À época, eu estava casado com minha ex-mulher Renata. Na noite daquela quinta-feira, decidimos ver o filme em nossa casa, no Alto da Lapa, em uma cópia em DVD alugada horas antes na vizinha Rua Pio XI. Lembro que nos divertimos à beça com a porralouquice de Douke e Dr. Gonzo e pretendíamos dormir, por volta das 23h30, quando uma surpresa, tão inusitada quanto às do filme, nos deixou completamente em pânico. Renata estava grávida. Oito meses e uma semana. No dia anterior, havíamos retornado ao obstetra, que garantiu: “Está tudo bem com o menino. Você vai fazer um retorno daqui a 15 dias e logo depois ele nascerá”. Equívoco total. Dez minutos depois de subirem as legendas do filme, ainda estávamos no sofá-cama da sala quando a bolsa estourou e o líquido amniótico invadiu o tecido do móvel e encharcou nossas canelas. Desesperado, atônito, corri para o hospital Metropolitano, a alguns quilômetros de casa, jurando que o menino nasceria no carro.
Davi tem hoje 12 anos. Chegou a esse mundo às 13h10 de 10 de maio de 2002. A cada novo ano, o aniversário do meu filho é também a data que me faz lembrar esse grande herói do jornalismo mundial chamado Hunter S. Thompson, autor de outras obras fundamentais para qualquer aspirante ao ofício, como A Grande Caçada aos Tubarões (Conrad, 2004), Rum: diário de um jornalista bêbado (Conrad, 2005), Reino do Medo: segredos abomináveis de um filho desventurado nos dias finais do século americano (Cia. Das Letras, 2007) e Hells Angels: medo e delírio sobre duas rodas (L&PM, 2010).
* Marcelo Pinheiro atua como jornalista cultural desde 1997, quando passou a escrever na extinta revista Cenário. Desde 2009, integra a redação da revista Brasileiros. Atualmente, é editor da publicação.
Documentário “Fear and Loathing on the Road to Hollywood”:
+MAIS:
Muito bom. E não é porque conheço o autor da crônica e o autor do tema há anos, Aproveito para sugerir um livro ainda não lançado no Brasil sobre o bom Doutor e uma pendenga judicial que comento no artigo aqui, caso se interessem: http://orebitedoverbo.blogspot.com.br/2014/07/hunter-s-thompson-e-ultima-batalha-gonzo.html Sigam com o bom trabalho, brothers and sisters! Abraço, C. J. Alves