Há 35 anos… dia 11 de maio de 1981.
POR GUILHERME ALMEIDA*
Na minha vida, sempre busquei e busco inspiração em seres humanos que se alinharam com suas missões e fizeram de suas passagens aqui na Terra algo significativo. Estudar suas vidas com afinco tem ajudado a me alinhar, dia após dia, com o meu dharma.
Nessa minha lista pessoal, figuram personalidades como Gandhi, Lincoln, Mandela, Lennon, Madre Teresa, Einstein, Aaron Swartz, Malala, Kennedy, Tim Berners Lee, Osho, entre outros. Mas talvez nenhum deles me inspirem e me movam de forma tão empática e direta quanto o franzino garoto que teve como berço uma das favelas mais miseráveis do planeta, paradoxalmente situada em uma ilha banhada pelo mar caribenho: Robert Nesta Marley.
Não tenho a menor intenção e nem ousarei escrever aqui algum tipo de biografia sobre o Rei do Reggae. Até porque o brilhante Catch a Fire de Timothy White, que li e reli algumas vezes, cumpre essa tarefa com maestria.
Nesses 35 anos da partida de Bob – 11 de maio de 1981 -, meu objetivo maior é ir além da imagem que retrata apenas o talentoso músico que ele foi e quão grande eram os spliffs que faziam sua cabeça cheia de dreadlocks.
Desde a primeira vez que ouvi Bob, dentro dos meus conturbados 14 pra 15 anos, a conexão foi pura e absoluta. Uma mensagem transmitida e captada de forma praticamente divina, de essência pra essência. E embora eu seja um cara sensível, credito essa mágica afinidade ao enorme talento de Bob em se conectar com seu público e inspirar multidões até os dias atuais, geração após geração, através de uma mensagem extremamente poderosa de libertação e amor.
“Sim, é necessário entender as letras. Elas têm um significado, sabe? Algumas pessoas entendem as palavras. Algumas pessoas nunca passam por aquelas experiências. Mas milhares de pessoas sofrem. Muitas pessoas sofrem. E essa música vem das massas.”
Quanto mais tinha contato com sua música, mais tendia a crer que o tímido rude boy dos guetos de Trenchtown estava muito mais próximo de uma personificação do tão esperado Leão de Judah do que o imperador da Etiópia a quem Bob dedicou grande parte de sua vida a creditar esse título. Haile Selassie I, também conhecido como Ras Tafari (Ras é um título de nobreza equivalente ao de Duque), era profetizado por muitos, incluindo Bob, como o messias. Daí o famoso grito em muitas de suas hipnotizantes performances ao vivo.
Bob era um líder nato e sua música foi – e ainda é – o veículo sagrado que semeava sua mensagem. Em um primeiro momento, nos corações dos afrodescendentes espalhados por todos os continentes, mas, posteriormente, a todas minorias oprimidas, principalmente as mais jovens, que abraçaram sua mensagem como uma das principais bandeiras da luta pela liberdade por todo o globo.
“O Reggae é a música do povo. O Reggae é as notícias. Notícias sobre seu próprio ego. Sua própria história. Coisas que não te ensinam na escola, sabe?”
No início do documentário “Time Will Tell”, Bob atenta para um fato simbólico de sua existência: “Não tenho preconceito comigo mesmo. Meu pai é branco (um militar inglês de mais de 60 anos que abandonaria ele e sua mãe, de apenas 17 anos, logo após seu nascimento), minha mãe é negra. Me chamam de mestiço ou algo assim. No final, não estou do lado de ninguém. Não estou do lado dos negros, não estou do lado dos brancos. Estou do lado de Deus. O Homem que me cria, que me faz vir do negro e do branco.”
O doc segue com uma antológica versão acústica de “Coming In From The Cold”, faixa que abre seu último álbum, Uprising, e simboliza bem o inevitável impacto da mensagem de Marley em nossas almas. Na canção, Bob profere frases como: “É com você, é com você, é com você que estou falando/Quando uma porta está fechada, você não sabe que muitas outras estão abertas?/Você deixaria o sistema matar seu próprio irmão?/Não, dread, não!”
Embora musicalmente sofisticada e inovadora em muitos aspectos, a música de Bob Marley era um chamado simples e direto à sanidade, em um mundo nitidamente insano diante de seus profundos olhos negros. Um chamado potente, capaz de despertar a massa, quase como que uma precursora da famosa pílula azul. Um pouco mais pra verde, no caso… mas foi sempre dessa forma subversiva que consumi e ainda consumo toda a fumaça sonora produzida por Bob Marley.
Bob era de verdade. Nunca houve separação entre sua vida pessoal e sua carreira. Era tudo uma coisa só, a serviço de um propósito maior. Acredito que esse seja o fator mais cativante para todos que se conectam com sua música.
Sua alma rebelde sempre esteve presente em suas canções e em muitas de suas falas, como mostram as frases escolhidas a dedo para compor esse post, retiradas das inúmeras entrevistas nas quais Bob aproveitava para fazer sua militância e passar a sabedoria, que parecia ser algo inato em sua vida.
“Me vejo como um revolucionário. Que não tem ajuda e não aceita suborno de ninguém. Luto sozinho, com a música.”
Mas existiam aspectos de uma pureza quase doce, também presentes na personalidade de Bob. Aspectos que muitas vezes passam imperceptíveis na história do líder popular que uniu pela primeira vez, ainda que apenas por um breve momento, durante o “One Love Peace Concert” (Jamaica, 1978), os líderes dos dois maiores e mais antigos partidos políticos jamaicanos. Justamente na época em que estes vinham promovendo uma verdadeira guerra civil em toda a ilha. Dias antes, Bob, sua mulher e alguns amigos foram vítimas de um atentado, levando dois tiros de raspão em sua própria residência, na Hope Road.
Podem não ser tão óbvias as fragilidades do compositor do hino de independência do Zimbábue. O histórico show de Marley que oficializou a data, em 18 de abril de 1980, levou milhares de africanos a dançar feito loucos na presença visivelmente contrariada da família real britânica, representada pelo Príncipe Charles.
“Por que uma raça quer ser mais rica e quer que a outra seja pobre? Por que brigar uns com os outros? Não existe mais isso. Que a juventude de hoje diga não! Isso não pode mais funcionar!”
Em “Marley”, o último filme produzido sobre a vida de Bob, muitos de seus amigos enfatizam o trabalho social de Bob com o povo de Trenchtown. Eles faziam longas filas em frente à Hope Road (não por acaso, Estrada da Esperança) e eram atendidos pessoalmente por Bob. Recebiam não apenas doações de quantias suficientes para começarem algo, mas também conselhos e conforto espiritual.
“Eu não tenho nenhuma ambição, sabe? Só tem uma coisa que eu gostaria de ver acontecer. Gostaria de ver a humanidade vivendo unida. Brancos, negros, chineses, todos, entende? Só isso.”
Outra coisa que me aproxima de Bob e gera ainda mais empatia por sua pessoa é a sua paixão pelo futebol. Não pelo negócio futebol, mas pelo jogo em si. Os lances, os movimentos.
“O futebol é uma parte de mim, quando eu jogo o mundo ao meu redor desperta.”
Uma passagem curiosa do livro Catch a Fire conta sobre o dia em que Bob foi ao estádio assistir seu amigo e treinador físico, Allan “Skill” Cole, um habilidoso rasta que jogava pela seleção jamaicana de futebol e pelo Santos de Kingston. A partida era contra o Cosmos de Nova York. No time americano estava nada mais nada menos que Pelé. O livro conta que Skill Cole jogou bem melhor que o Rei do futebol e foi o cara da vitória do Santos jamaicano.
Mas essa história fica pra outro dia… Porque todo dia é histórico.
E viva Bob Marley!
*Guilherme Almeida é um buscador espiritual e usa a música como principal meio de conexão com seu mestre coração.
“Coming in From the Cold”, trecho do doc “Time Will Tell”:
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