Há 20 anos… dia 24 de abril de 1996.
POR PEDRO DE LUNA*
Pode parecer bobagem, mas pela minha memória, nunca se falou tanto de aviões quanto em 1996. Me lembro de, aos oito anos, imitar as comemorações do ascendente fenômeno (cuja História lhe garantiria este apelido, com F maiúsculo, para a posteridade) Ronaldo, então magro e chamado de “Ronaldinho”, simulando um aviãozinho. Me recordo também da tristeza avassaladora que foi perder os Mamonas Assassinas, em um trágico acidente aéreo supostamente “previsto” pela Mãe Dinah, no mesmo ano da famosa queda do Fokker 100 da TAM, que vitimou 96 pessoas em Congonhas. Mas as lembranças vão além, e entre coisas boas e ruins, acho que até Santos Dumont ficaria orgulhoso do criativo aproveitamento do seu legado se visse a troca de provocações de dois senhores num simples amistoso entre seleções, usando a imitação de um avião como alegoria.
Lá se vão 20 anos desde que o Brasil visitou a longínqua Joanesburgo para enfrentar a surpreendente África do Sul, que recém havia conquistado sua primeira e única Copa Africana de Nações, alguns meses antes. Além do bom momento no futebol – esporte em que os sul-africanos nunca tiveram grande tradição, é bom frisar – o país vivia o boom de empolgação pelo histórico título de sua seleção de rugby, que faturou a Copa do Mundo da modalidade pela primeira vez em 1995, num episódio que é contado como uma grande metáfora da unificação racial da nação, que apenas alguns anos antes viu o tenebroso regime do apartheid ser oficialmente extinto.
O Brasil, treinado pelo Velho Lobo Zagallo, passava por um raro período de tranquilidade. Em 1994, encerrou o jejum de 24 anos sem levantar uma Copa do Mundo e se sagrou tetracampeão. Assim, não precisou disputar as Eliminatórias de seu continente, fazendo com que o polêmico treinador usasse os muitos amistosos marcados para montar a base que disputaria as Olimpíadas de Atlanta, alguns meses depois. Nomes novos, como Dida, Rivaldo e Roberto Carlos começavam nessa época a escrever sua história na Amarelinha. Outros que não tiveram a mesma sorte, como Zé Maria, Alexandre Lopes, Zé Elias, Flavio Conceição, Sávio, André Luis, Amaral e Jamelli também figuravam no escrete, amparados por medalhões experientes, como Aldair e Bebeto, que integrariam a cota acima dos 23 anos de idade no projeto olímpico.
Se esperava facilidades, o Brasil se surpreendeu. Movidos pela atmosfera do Soccer City lotado por 80 mil fanáticos, os Bafana Bafana vieram com tudo para cima do inexperiente e desentrosado time canarinho. Após escanteio cobrado da esquerda, Dida saiu mal do gol (deficiência crônica do grande goleiro, que até lhe rendeu um divertido comercial da Volkswagen alguns meses depois) e Phil Masinga, atacante do Bari, cabeceou para as redes, abrindo a contagem para os donos da casa. Após mais alguns sustos no contra-ataque, o zagueiro Alexandre Lopes cortou mal um cruzamento e a pelota sobrou limpa para o camisa 10 Doctor Khumalo (como esquecer um nome destes?) emendar um petardo de direita: 2×0 para a África do Sul. Inacreditável.
E aí veio o divisor de águas que fez esta partida se eternizar: o treinador Clive Barker, esfuziante de alegria, trajado em um belo pullover vermelho, invade o campo para comemorar o gol de Khumalo em frente ao banco de reservas brasileiro, imitando um aviãozinho. Sem dúvidas um momento de epifania, encarado como um ato de escárnio e provocação pelo sempre sensível Zagallo, que assistia o Brasil passivamente apanhar dos donos da casa.
No intervalo, com o ego ferido, o treinador brasileiro deu uma bronca homérica na equipe. A mudança veio de maneira improvável: o operário Zé Elias entrou em lugar do apagado Jamelli, adiantando Flavio Conceição para a criação. O time se acertou e passou a dominar a partida desde o primeiro minuto do segundo tempo. Aos 11, Conceição emendou belo chute de canhota de fora da área e diminuiu para o time amarelo. As chances iam sendo criadas e desperdiçadas, mas era claro que o Brasil estava no jogo. Na metade da segunda etapa, o então sumido Bebeto achou Rivaldo na área. O craque pernambucano teve a frieza típica dos gênios para dominar, driblar o zagueiro e fuzilar as redes, empatando o cotejo e deixando os sul-africanos com medo do gigante desperto.
Faltando apenas 10 minutos para o final, Bebeto perdeu chance incrível de virar o jogo, isolando por cima da meta. O tento brasileiro estava amadurecendo e chegou no finzinho da partida: aos 40, Zé Maria cruzou da direita e o mesmo Bebeto, usando sua marca registrada, o voleio mortal, acertou o cantinho. Três a dois, virada incrível! Em 2010, em entrevista ao globoesporte.com, Doctor Khumalo relembrou: “Quando fizemos 2×0, olhei para o placar e pensei: ‘Bom, eles são tão humanos quanto nós’. Mas depois vi por que a Seleção Brasileira é sempre tão forte”.
E então foi a vez de Zagallo dar o troco em Clive Barker. Empolgado como um menino, o Velho Lobo invadiu o campo e se dirigiu às proximidades do banco dos Bafana Bafana, fazendo um aviãozinho junto de dois integrantes da comissão técnica (Américo Faria e Luiz Carlos Prima). Estava feita a forra. Nas palavras do próprio Barker, não há mágoas sobre o episódio, que lhe ensinou uma preciosa lição: “Não houve nenhum desrespeito, foi só uma forma de demonstrar minha felicidade. Acho que quando Zagallo repetiu o gesto, quis me dar uma lição: nunca comemore muito antes da hora, principalmente contra o Brasil”.
* Pedro De Luna, 27, publicitário, achou engraçado crescer ouvindo que ia ter que engolir o Velho Lobo como treinador da Seleção.
Os gols e os aviõezinhos do jogo!:
Fontes e +MAIS:
– Livro Todos os jogos do Brasil, de vários autores