Há 10 anos… dia 19 de março de 2004.
POR VALDOMIRO FERREIRA NETO*
“Feliz é a inocente vestal
Esquecendo-se do mundo e sendo por ela esquecida
Brilho eterno de uma mente sem lembranças
Toda prece é ouvida, toda graça se alcança”
O poema do inglês Alexander Pope foi o sopro para o filme que carrega no título o terceiro verso dessa estrofe. Comédia? Drama? Ficção Científica? Uma mistura dos três gêneros, com a incrível capacidade do roteirista Charlie Kaufman de mexer com a mente e suas infinitas teias. Assim é “Brilho Eterno de uma mente sem lembranças” (“Eternal Sunshine of the spotless mind”). Seríamos plenos de felicidade ou paz caso pudéssemos esquecer o que nos gera dor e dúvidas?
O filme ganhou apenas um Oscar, o de Melhor Roteiro Original, mas bem sabemos que essa não pode, nem de longe, ser a medida das coisas quando o assunto é cinema. A magistral Kate Winslet foi indicada para o prêmio de Melhor Atriz, mas não levou. Verdade que a estatueta exalta o valor de Kaufman, mas a relevância da película vai muito além.
O ponto-chave é o amor, tema dominador das artes visuais, escritas e plásticas, em sua face crua. Clementine (Kate Winslet), inquieta – as cores com que pinta o cabelo sugerem a inobservância da ordem – envolve-se com Joel (Jim Carey), sujeito tímido e melancólico. O relacionamento, muito real e pouco cinematográfico no sentido de devaneio, é apagado da mente dela por um método desenvolvido pelo Dr. Howard Mierzwiak (Tom Wilkinson).
Esquecer uma história de amor e tudo que a circundou. O valor da memória para o afeto. A mistura de sonho e realidade. A discussão posta por Kaufman e pelo diretor Michael Gondry vem imersa em carga filosófica e modernidade. Joel recorre ao mesmo tratamento como “vingança”, após se deparar com Clementine em um supermercado e ela tratá-lo como um anônimo (tratamento sincero, pois ela desconhece quem seja aquele homem – cruel!).
A trama, ao fugir do linear e dos ditames hollywoodianos, nos põe, a todo momento, diante do papel essencial das lembranças para os sentimentos da vida. A fotografia, forrada por cores quentes, e a música exata tornam o filme de uma beleza dolorida. A história penetra nas veias do espectador.
Assim como em “Quero ser John Malkovich” e “Adaptação” (filmes dirigidos por Spike Jonze), o roteiro de Kaufman nos deixa mais próximos do cotidiano e distantes das fantasias. Quando Joel está na máquina de triturar memórias, temos uma fita que se enrosca e um trabalho magnífico das forças do inconsciente. Os momentos que tocam na infância nos levam inevitavelmente a pensar em Freud.
Nesta primeira década de vida, o filme é mais fresco ainda. Impossível não se lembrar do amor líquido descrito pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. É dele que Joel e Clementine tentam escapar.
* Valdomiro Ferreira Neto, 36, é jornalista e atualmente trabalha como editor do diário esportivo LANCE!. Apaixonado também por música, cinema e literatura, expõe seus devaneios no blog Ideias Flutuantes.
Veja o trailer de “Brilho Eterno de uma mente sem lembranças”:
Fontes:
– IMDb