Há 30 anos… dia 28 de fevereiro de 1986.
POR RODRIGO MELLO*
“SEXTA-FEIRA, 28 DE FEVEREIRO DE 1986. O presidente José Sarney levantou-se por volta de seis horas da manhã naquele que seria o grande dia de seu governo. Banhou-se e barbeou-se tão cuidadosamente que um de seus interlocutores de logo mais notaria que seu rosto estava ‘quase brilhando’. Vestiu um terno com jaquetão azul-escuro, camisa branca com colarinho em ponta e uma gravata de quadriculado branco sobre fundo cinza-claro. Ainda antes da chegada dos políticos para o café da manhã, releu o discurso que Campelo deixara com o ajudante de ordens. O presidente encontrou tempo e atenção para fazer cerca de dez substituições de palavras, a lápis, trocando, por exemplo, a certa altura do texto, ‘vida’ por ‘destino’ ou a expressão ‘nos ajudem’ por ‘nos fortaleçam’. Na crucial questão dos ‘fiscais do presidente’, novamente a sensibilidade política lhe indicou que era necessária uma ênfase especial. Assim, no trecho que dizia: ‘Cada brasileira ou brasileiro será um fiscal dos preços. Ninguém poderá, a partir de hoje, praticar a indústria da remarcação’, o presidente inseriu uma frase de apelo direto entre as duas orações: ‘Você está investido pelo presidente para ser um fiscal dos preços em qualquer lugar do Brasil’.
Com o discurso pronto, Sarney foi tomar café com os líderes da Aliança Democrática. Apesar do horário de verão – eram na verdade seis horas da manhã – um sol forte batia no Palácio da Alvorada.”
O Plano Cruzado faz trinta anos. O trecho acima foi extraído da premiada reportagem de Ricardo Setti para a edição de maio de 1986 da Revista Playboy, texto em que registra com sensibilidade de historiador os bastidores da preparação do plano econômico, promulgado naquele 28 de fevereiro.
Eu completei dez anos em abril de 1986, e me lembro do plano econômico como o único assunto à mesa – meu avô, meu pai, meus tios só falavam nisso. Ou, todo mundo só falava nisso, pois o plano virou o País de cabeça para baixo. Na verdade, o Brasil já estava de cabeça para baixo, vivendo sua turbulenta e sofrida redemocratização, e o plano era a primeira tentativa honesta e plausível de endireitá-lo. Um time de economistas relativamente jovens, com idéias novas, consideradas heterodoxas à época, se reuniu secretamente por meses pensando uma forma original e incisiva de atacar a famigerada hiperinflação – e bote hiper nisso: girava em torno dos 15%… ao mês, e não parava de crescer, já não reagindo mais a medidas tradicionais, clássicas. Até então, tentativas ousadas já haviam sido postas em prática em Israel e na Argentina, com resultados ainda incertos.
Às 9h30 da manhã do dia 28 de fevereiro, na TV, o presidente anunciou o pacote econômico: uma nova moeda foi criada, o Cruzado, com extinção do Cruzeiro e corte de três zeros no valor nominal da moeda, com a conversão imediata de todas as contas, depósitos e empréstimos para o Cruzado, com a paridade mil para um; conversão dos salários pela média do último semestre; abono salarial de 8%, aumento de 15% do salário mínimo; gatilho salarial obrigatório quando a inflação acumulasse em 20%; e, principal, congelamento de preços e tarifas em toda a economia.
De início, foi um sucesso. Os preços congelados e os salários (relativamente) altos deram por alguns meses uma ilusão geral de riqueza repentina, gerando consumo desenfreado. Sarney, o presidente paraquedista, virou herói nacional, com bigode, jaquetão e tudo. Como queríamos que desse certo! Como queríamos amar um presidente civil, depois daquele deserto militar!
Mas era bom demais pra ser verdade: o crescimento na demanda foi muito rápido, e a resposta no lado da oferta, que já não seria imediata num cenário de preços livres, foi nula, já que os preços congelados não entusiasmavam nenhum empresário: produtos básicos começaram a faltar. E foi um pânico geral. Lembro de minha professora de 4ª série primária dizendo à classe: “avisem suas mães que consegui encontrar leite Xandô em Pinheiros, eles vendem numas kombis que ficam rodando o bairro…” (hoje penso no absurdo que é faltar leite, mas não me lembro se, à época, transmiti o recado. Eu nunca gostei de leite).
O aumento no mínimo, o abono, o gatilho, e a ausência de corte nos gastos públicos, decisões tomadas para aplacar uma possível fúria da população, são hoje tidas como as causas do fracasso, e atribuídas à falta de coragem para bancar um plano que pudesse ser de início impopular, mas que devolvesse renda à população via estabilidade da moeda – o que no longo prazo traria muito mais benefícios à sociedade. A própria ideia de congelamento de preços é hoje vista como um erro crasso, ainda que à época pudesse ser tida como plausível por um grupo tão diverso de economistas.
As emendas feitas ao plano nos 12 meses seguintes foram insuficientes, também por falta de coragem do presidente (e também por uma cisão ideológica no grupo de economistas que o assessoravam – a ala desenvolvimentista teve sua preferência), e, em fevereiro de 1987, o País acabou decretando a moratória na sua dívida externa, evento extremo, e que custou muito caro ao Brasil. Ainda veríamos o fracasso de outros planos menores e mais um de impacto, o Plano Collor, em 1990, antes que pudéssemos enfim ter uma moeda estável, com o Plano Real, em 1994, um plano suave, sem congelamentos, sem dia D.
Mas isso fica pra outro dia… Porque todo dia é histórico.
* Rodrigo Mello, 39 anos, é psicólogo, professor, e, como Tom Jobim, acha que o Brasil não é para principiantes.
O anúncio do Plano Cruzado:
Jornal Nacional de 28/02/1986:
Fontes e +MAIS:
– Livro A História Secreta do Plano Cruzado, de Ricardo Setti
– Livro Saga Brasileira: a longa luta de um povo por sua moeda, de Miriam Leitão