Há 40 anos… dia 12 de setembro de 1975.
POR DANIEL PUCCI *
– Alô? Dave?
– Oi, Roger. Eu imaginei que você ligaria hoje.
– São quarenta anos, meu caro. E o pior? Não mudou nada.
– Roger, você está bem?
– Estou tão bem como sempre estive. Mas dormi mal e enquanto tomava meu chá e lia meu jornal, percebi que não avançamos nada em 40 anos.
– Do que você está falando?
– Wish You Were Here. Continuamos iguais. Você se lembra do que se trata o álbum, não?
– Claro. Ausência pura. Ausência do Syd, ausência nossa. Estávamos tão preocupados em superar o Dark Side que parecia que não éramos nós mesmos. E a gravadora em cima da gente.
– Isso! Não sei se você percebeu, mas falou o crucial. Ausência de nós mesmos. Pouca gente sabe que a única música que escrevemos pensando no Syd é “Shine On You Crazy Diamond”, as pessoas pensam que o álbum é inteiro sobre ele. Não deixa de ser, mas na verdade é também sobre todos nós.
– Sim, estávamos sob muita pressão. Até o Storm Thorgerson não sabia como fazer uma capa melhor que o Dark Side. Achei o homem pegando fogo na capa uma ótima, porque essa era exatamente a sensação que tínhamos, de que iriam nos queimar. Mas por isso colocamos “Welcome to the Machine” e “Have a Cigar” no álbum. Para falar sobre essa indústria fonográfica que nos joga na máquina trituradora, acaba com a gente enquanto nos promete jaguares, charutos e mulheres.
– Sim, Dave, mas não quis dizer que o álbum fala de todos nós da banda. Ele fala de todos nós da humanidade. A indústria fonográfica é um microcosmo que vivíamos naquele momento, mas a verdade é que existe uma indústria de consumo muito maior que nos promete uma vida de Rock Star e nos cobra um preço muito alto.
– Que preço?
– A perda de nós mesmos. Nos fazem acreditar que só seremos completos quando consumirmos tudo o que nos vendem. Tudo é produto, até as pessoas e as relações. E não estou falando de putas. Hoje em dia é mais bacana quem tem mais amigos no Facebook. As pessoas usam aplicativos como cardápios de foda no celular. É tudo imagem. A individualidade se foi.
– Which one is Pink?
– Exato. Tanto fazia quem era o Pink, o que importava é quantos álbuns venderíamos. Acho que não percebemos naquela época, mas falávamos de algo muito maior que as gravadoras. Nós viramos o produto. Acho que foi isso que matou o Syd.
– O Syd já estava perdido desde 68, nós gravamos Wish You Were Here em 75.
– Eu sei, mas já existia naquela época esse mecanismo do qual estou falando. O Syd era o mais sensível, o mais inteligente. Ele ficou preso no tiro cruzado entre a infância e o sucesso. Você lembra da genialidade dele no Piper at the Gates of Dawn. Lá ele era si mesmo, solto, criativo, experimental. Mas sentiu a pressão que o mundo faz para nos conformarmos, para nos encaixarmos nos padrões daquilo que é esperado de nós. O mundo pediu para Syd deixar de ser si mesmo. E ele começou a se perder, para ele a individualidade era inegociável. Ele era o homem mais íntegro que conheci. Por isso as boas vindas acabaram para ele. O mundo se tornou hostil e ele tentou se encontrar no ácido. Foi justamente lá que ele se perdeu de vez.
– Eu não acho que ele foi para o ácido para se encontrar novamente, mas exatamente para fugir do mundo. Você tem razão, Roger. O que é pedido de todos nós é que abramos mão da nossa individualidade para fazermos parte, estarmos conectado, pertencermos. E funciona, porque há uma enorme solidão nessa individualidade de ter que escolher o próprio caminho e bancar as consequências disso. A gente tem medo dessa solidão e aceita virar produto em troca de migalhas de afeto. No final acabamos desaparecendo sem nem perceber e mais sós que se estivéssemos escolhido a nós mesmos.
– Por isso a letra de “Wish You Were Here”. Não é especificamente sobre o Syd, é sobre todos nós. Eu me pergunto nela se nós podemos nos libertar o suficiente para poder experimentar a realidade da vida. Sempre pensei que é a música que Syd cantaria para nós, perguntando se, nessa diluição da nossa individualidade no mundo, mantivemos nossa capacidade de diferenciar o céu do inferno, se trocamos nossos heróis por fantasmas, se nos tornamos macacos famosos dentro de uma jaula. Vejo o Syd desejando que nós estivéssemos lá com ele. Almas perdidas, mas juntas.
– Eu imagino ele cantando isso. Mas prefiro estar na guerra, lutando na trincheira contra esse sistema. Pode até ser que o Syd enlouqueceu para não permitir que o mundo se apoderasse dele. Mas ele pagou o maior preço que há. Não apenas se perdeu dele mesmo, se perdeu de todos. Você se lembra do dia que ele apareceu no estúdio?
– Ainda tenho pesadelos sobre isso. Estávamos terminando a mixagem do “Shine On” e ele aparece, com os olhos vazios, parecendo buracos negros, aquele corpo gordo, careca, sem sobrancelha. Foi a cena mais traumatizante que eu já vi. Ele teve um destino mais triste porque era melhor que todos nós e não era capaz de compactuar com o mundo sujo no qual vivemos. Nós somos milhões, bilhões de pessoas nos enlouquecendo todos os dias em nome de nada. Nós vivemos o maior dos vazios, a maior das solidões, que é abrirmos mão de nós mesmos por medo de ficarmos sozinhos.
– Roger…
– Fala Dave…
– Venha tomar um chá aqui em casa e vamos ficar sós juntos.
* Daniel Pucci é psicólogo e foi conquistado pelo Pink Floyd aos 12 anos quando ouviu pela primeira vez que “we don’t need no education”. Já assistiu The Wall umas 25 vezes e tem a própria cópia de “Mágico de Oz” com a trilha sonora do Dark Side of the Moon. Sonha em ver ao vivo David e Roger juntos.
Curta a obra-prima, o álbum completo Wish You Were Here:
Fontes:
– Wikipedia – Wish You Were Here
– Wikipedia – Pink Floyd
Daniel,vc fez um texto formidável ! Parabéns e obrigado por nos proporcionar esse belo presente !!!
Daniel, parabéns. Poucas vezes vi alguem captar a essência de um álbum do PF e das personalidades conflitantes do roger e do dave. Salvei seu texto no pocket pra não perder nunca mais.
O mérito é do colaborador Daniel Pucci!
Muito obrigado pela audiência, Francisco!
Grande abraço,
Fernando.
Texto magnífico!
Parabéns!!!