Há 30 anos… dia 28 de janeiro de 1985.
POR DANIEL SETTI*
28 de janeiro de 1985. Mal terminava a 12ª edição do American Music Awards e começavam a chegar aos estúdios da gravadora A&M, em Los Angeles, limusines vindas do Shrine Auditorium, o local da cerimônia. Intimados a “deixar seus egos do lado de fora”, como pedira Quincy Jones – um dos responsáveis pela afluência daquela frota -, os passageiros dos carrões desembarcavam, ajustavam os headphones e revisavam a letra de uma música. A missão: gravar os vocais de “We Are the World”, cujo lançamento em compacto se propunha a angariar fundos a uma campanha de combate à fome na África.
Inspirado no single “Do They Know It’s Christmas”, do supergrupo británico Band Aid, que no mês anterior rendera 8 milhões de libras à mesma causa, o veterano cantor e ator Harry Belafonte teve a ideia de americanizar a proposta. Conseguiu que o mítico produtor Jones se encarregasse de domar a fauna de astros. Para a composição, foram recrutados dois sinônimos de hits: Michael Jackson e Lionel Richie. Rapidamente, o autor de “Thriller”, o álbum mais vendido de todos os tempos – sob batuta dele, Quincy -, concebeu a grudenta balada, com pitacos finais do bigodudo coautor.
Ao chegarem para a histórica sessão, os participantes escutaram a careta versão instrumental pronta, abundante em timbres de churrascaria e tão datada quanto os mullets e ombreiras presentes. Um aspecto cômico saboroso que ficaria para a eternidade (na mesma medida que a canastrice de algumas interpretações e a ingenuidade de achar que o problema africano seria mesmo resolvido).
Piadas à parte, o prestígio do quarteto por trás da empreitada e a sacada de fisgar a turma no AMA surtiram enorme efeito. A exaustiva noitada, que durou até a manhã do dia 29, reuniu um elenco irrepetível. Cantaram, em estrofes individuais e duetos – com solos nas “pontes” e nos refrões -, duas das maiores figuras da canção popular americana do século XX (Ray Charles e Bob Dylan), gênios da black music (Smokey Robinson, Stevie Wonder) e algumas de suas divas (Diana Ross, Tina Turner, Dionne Warwick); songwriters multiplatinados de diferentes gerações (Paul Simon, Bruce Springsteen), queridinhos do country (Willie Nelson, Kenny Rogers) e gaiatos de ocasião, favorecidos por suas posições nas paradas naquela semana (Huey Lewis, Steve Perry); além da divindade pop em pessoa, Michael Jackson, que, não bastando ter composto o tema e soltado a voz, atuou como uma espécie de assistente do maestro Jones.
Cada qual se esforçou desesperadamente para imprimir suas idiossincrasias estilísticas nos poucos segundos que lhes correspondiam, o que rendeu momentos divertidos, mas também alguns contrastes interessantíssimos. Em que outra oportunidade seria viável o minidueto entre um tímido Springsteen, incorporando um rústico sindicalista-crooner de New Jersey, e Wonder, abusando de suas inconfundíveis ginásticas métricas e melódicas?
Lançado mundialmente em 7 de março, “We Are The World” teria, segundo fontes da indústria fonográfica, vendido 20 milhões de cópias, um recorde para um compacto, e gerado US$ 63 milhões. Simbolizou à prefeição o som, a estética e as pretensões megalomaníacas dos artistas oitentistas. E fez com que “caridade” passasse a figurar definitivamente no glossário do mainstream musical.
Voltando à noite de 28 de janeiro de 1985, que completa 30 anos hoje, encontramos um autêntico tesouro de anedotas pop, degustáveis no making of da gravação, narrado por Jane Fonda. Os momentos imperdíveis incluem: a homenagem espontânea, puxada por Al Jarreau, que o grupo faz a Belafonte, resgatando sua clássica “Day-O (Boat Banana Song)”; Cyndi Lauper refazendo seu take por causa do barulho dos penduricalhos; e as várias passagens onde escancara-se o desconforto de Dylan, em sua eterna atitude “I’m not there”. O homem só relaxa um pouco quando colocado ao lado do ídolo Smokey Robinson.
* O jornalista, músico e DJ paulistano Daniel Setti tem 36 anos e mora em Barcelona desde 2006. Publicou 100 listas musicais pitorescas no blog http://lavemomaladalista.blogspot.com.br, tem mais 82 inéditas prontas e outras 456 em construção.
Documentário sobre bastidores da gravação:
E ouçam (e cantem!) junto com eles:
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