Há 50 anos… dia 15 de setembro de 1967.
POR WALTERSON SARDENBERG Sº*
As listas dos melhores LPs de 1967 costumam ser encabeçadas, claro, por Sgt. Pepper’s, dos Beatles. Nada mais justo. Seguem-se dois petardos de Jimi Hendrix: seu álbum de estreia Are You Experienced? e Axis: Bold as Love, além de Sell Out, do The Who, e Disreali Gears, do Cream. Várias listas incluem, também, Velvet Underground & Nico; Forever Changes, terceiro da banda psicodélica Love e outro disco de estreante, The Piper and the Gates of Down, do Pink Floyd. Há quem cite, ainda, I Never Loved a Man The Way I Love You (a primeira gravação decididamente soul de Aretha Franklin) e Francis Albert Sinatra & Antônio Carlos Jobim. Poucas listas, no entanto, incorporam Something Else by The Kinks. Eis o fato: os Kinks são um dos grupos mais subestimados do rock. Uma sacanagem histórica.
Quando alguma obra de referência trata dos Kinks, mesmo as mais sérias, lá vem a mesma história pela enésima vez: o grupo britânico capitaneado por Ray Davies (vocais e guitarra), secundado por seu irmão Dave (vocais de apoio e guitarra solo), Mick Avory (bateria) e Peter Quaife (baixo e vocas de apoio) fez, com “You Really Got Me”, ainda em 1964, a pioneira gravação do que seria mais tarde batizado de heavy metal. Consta que, para dar mais agressividade ao riff, David Davies rasgou com uma lâmina a frente do alto falante do amplificador e saturou o volume — embora os mal informados insistam que quem tocou a guitarra enfurecida foi Jimmy Page, que nem estava no estúdio. Mas, ora essa, os Kinks são muito mais do que apenas os criadores do proto-heavy-metal. Os rocks pesados, aliás, nem mesmo significam parte considerável da arte da banda.
A canção mais conhecida de Something Else, por sinal, não é nem mesmo um rock — se é que há algum rock genuíno no disco. Mas uma balada: “Waterloo Sunset”, uma elegia ao pôr de sol visto às margens do rio Tâmisa, em Londres, escrita e cantada pelo principal compositor do grupo, o londrino Raymond Douglas Davies, o Ray Davies. Foi lançada em compacto-simples quatro meses antes do LP, em 5 de maio de 1967. Para escrevê-la, Ray inspirou-se nos dias em que passava por ali na infância, levado pela irmã mais velha para o serviço público de saúde, e, mais tarde, quando aquele era o caminho para a Faculdade de Artes Plásticas que cursou.
Alguns consideram “Waterloo Sunset” a melhor canção pop de 1967, o que não é pouca coisa. Vejamos. Aquele foi o ano de “Light My Fire” (Doors), “Purple Haze” (Jimi Hendrix), “Sunshine of Your Love” (Cream), “Dear Mr. Fantasy” (Traffic), “I Can See for Miles” (The Who), “Arnold Layne” (Pink Floyd), “White Rabbit” (Jefferson Airplane), “A Whiter Shade of Pale” (Procol Harum), “The Tears of a Clown” (Smokey Robinson & Miracles), “Brown Eyed Girl” (Van Morrison), “All Along the Watchtower” (Bob Dylan), “Suzanne” (Leonard Cohen), “Happy Togheter” (The Turtles), “Itchycoo Park” (Small Faces), “Initials B.B.” (Serge Gainsbourg), “Darlin’ Be Home Soon” (Lovin’ Spoonful) e, claro, “A Day in The Life” (Beatles). Sem esquecer das nossas “Travessia” (Milton Nascimento), “Domingo no Parque” (Gilberto Gil), “Roda Viva” (Chico Buarque) e “Wave” (Tom Jobim).
Entre tantas maravilhas, “Waterloo Sunset” se destaca pela letra baseada em uma colagem pop, a melodia bela e melancólica, e a interpretação ao mesmo tempo contida e emocionada de Ray. O crítico Robert Christgau se derramou: “É a mais linda canção da língua inglesa”. Seu companheiro de ofício Stephen Erlewine ecoou: “Possivelmente, a mais bela música da era do rock”. O jornalista Tim Vickery, colunista da BBC Brasil e formado em história e política pela Universidade de Warwick, vai além. Propõe que “Waterloo Sunset” substitua o hino britânico. Exagero? No espetáculo final das Olimpíadas de Londres, em 2012, Ray Davies subiu ao palco só para cantar “Waterloo Sunset”.
Isso não redime o mundo de tratar mal os Kinks. Muito mal. Ainda que esse comportamento venha melhorando, vá lá. No ano passado, quando as TVs exibiram a série Vinyl — que narra os bastidores das gravadoras nos anos 60 e 70 — um dos atores do seriado era James Jagger, filho de Mick Jagger. Na ocasião, lhe fizeram uma velha pergunta: que banda ele considerava a melhor entre Beatles e Rolling Stones? James não enrolou: preferia os Stones. Mas emendou: se tivesse de escolher entre os Stones e os Kinks, ficaria com os Kinks.
Há quatro grandes grupos ingleses lançados nos anos 1960: Beatles, Rolling Stones, The Who e The Kinks. E fim de papo. Os demais, goste-se ou não, estão no segundo time ou pertencem já a uma outra geração roqueira, que se firmaria na década seguinte, casos do Led Zeppelin e do Pink Floyd, também gigantes. Por que os Kinks não tiveram o mesmo sucesso desses companheiros de geração? Um dos principais motivos: ao longo de quatro anos, a partir de 1965, o grupo se viu proibido de excursionar pelos EUA. Sim, teve seus vistos de entrada negados justamente na fase em que a fama de Beatles, The Who e Stones espalhou-se América adentro. O repúdio da Imigração dos EUA ocorreu em virtude do comportamento rebelde da banda à época. Pois é. E os Stones levaram a fama de delinquentes sozinhos…
Vamos aos fatos. Poucos meses antes da excursão americana de 1965, a primeira do grupo, Dave Davies desentendeu-se no palco com o baterista Mick Avory no decorrer de um show para 5 mil pessoas no País de Gales. Os dois trocaram não só xingamentos como porradas. Depois disso, Mick chegou a se esconder da polícia. Achava que tinha matado Dave no palco, ao golpeá-lo com um pedestal de prato da bateria. Claro que saiu dos Kinks. Barra pesada.
Temporariamente, foi trocado por Mitch Mitchell que, dois anos depois, entraria para o Experience, de Jimi Hendrix. Por fim, a turma do deixa-disso acalmou os ânimos e Mick Avory — que tocou com Jagger e Richards no embrião do que seriam os Rolling Stones — fez as malas, voltou aos braços da banda e partiu com os Kinks para os EUA.
O clima, como se percebe, não era mesmo dos mais amistosos. Ainda que Ray vivesse, aparentemente, uma vida pacata. Ele curtia o nascimento de sua primogênita com a primeira mulher, a lituana Rasa, quando foi retirado de casa para zarpar para Nova York e iniciar a excursão. Não estava, portanto, muito animado. Talvez por isso tenha reagido com aspereza quando o funcionário da alfândega, naquele 17 de maio de 1965, lhe perguntou, depois de reparar nos cabelos longos: “Você é uma menina ou um menino?”. Ray disparou: “Sim, sou uma garota. E o meu irmão também”. O incidente deteve a banda na aduana e provocou o atraso da entrevista coletiva.
Dois outros episódios ocorridos ao longo da estada americana, ambos em programas de televisão, levaram as chamadas autoridades a banir o grupo. Um deles aconteceu durante o programa Hullaballoo, da NBC. Apresentados por Frankie Avalon e Annette Funicello, os Kinks não se limitaram a tocar um sucesso. Ray Davies e Mick Avory, debochados, dançaram de rosto colado, o que levantou o alerta homofóbico da América, ainda hoje falsa puritana. Pouco depois, durante o programa de TV de Dick Clark, um homem de maus bofes perguntou a Ray se sua mulher, sendo lituana, era comunista. Para quê? Ray empurrou o infeliz, derrubando-o ao chão. Ao que tudo leva a crer, o sujeito era um membro sindical da Afra, a poderosa Federação Americana de Artistas de Rádio e Televisão.
Outro problema dos Kinks para galgar o mesmo sucesso dos companheiros britânicos de geração foi a escolha das gravadoras. A banda começou gravando na Pye, uma companhia inglesa de pouco poderio internacional. Nos Estados Unidos, seus discos eram lançados pelo selo de Frank Sinatra, o Reprise, então ainda sem muita habilidade para divulgar trabalhos de rock. No Brasil, pior: as gravações da Pye eram lançadas pela carioca Musidisc, de Nilo Sérgio. Muito boa, sim, para gravar e distribuir trabalhos do chamado sambalanço, mas, da mesma maneira que a Reprise, sem tato para o rock. Resultado: um álbum dos Kinks saía no Brasil; outro, não. As escolhas eram aleatórias.
(Já nos anos 70, a mudança do grupo para a RCA Victor, empresa bem maior e famosa por ter alicerçado a carreira de Elvis Presley, entre outros, poderia parecer um alento. Nem tanto. No Brasil, a companhia se esmerou em retalhar discos. Por exemplo: o grande álbum Hooker’ n’ Heat, do grupo Canned Heat com o blueseiro John Lee Hooker, foi lançado originalmente lá fora como um disco-duplo; mas por aqui saiu como simples. O mesmo ocorreu com o álbum-duplo dos Kinks, Everybody’s in Show Bizz, de 1972. Consistia em um disco ao vivo e outro de estúdio. No Brasil só saiu o de estúdio. Uma pergunta: alguém imagina o Álbum Branco, dos Beatles; o Exile on Main Street, dos Stones e o Tommy, do The Who, retalhados e resumidos a um disco só?)
Antes de Something Else, os Kinks haviam lançado quatro álbuns. Um a um, eles foram reforçando a identidade de uma banda muito diferente das demais. No primeiro e no segundo, em muitos momentos, o grupo tenta ser o que não é. À semelhança de outras bandas britânicas, procura emular a música negra americana dos rhythm’n’blues. Não funcionou. Ao contrário de Mick Jagger, Van Morrison, Steve Winwood ou Steve Marriott, o londrino Ray Davies jamais conseguiu cantar como um negro americano. Sua voz era — e é — inequivocamente branca. Ainda bem que ele se tocou disso a tempo. Tomou chá de simancol. Assim, disco a disco, os rhythm’n’blues foram sendo trocados por composições do próprio Ray, absolutamente particulares.
Ray e Dave são os únicos filhos homens de uma família de dez filhos. Vieram ao mundo depois de oito irmãs de idades muito variáveis. A convivência com elas fez com que os garotos ouvissem em casa, desde muito fedelhos, os mais variados estilos musicais, de ópera a canções havaianas. Esse turbilhão de gêneros seria essencial para formatar o estilo das canções de Ray.
Se o rock’n’roll é a base de muitas delas, nem por isso elas deixam de se aventurar pelo vaudeville francês, o filmusical americano, e, sobretudo, pelo music hall inglês. São uma amálgama disso tudo, quase todas compostas por Ray ao violão, com seu delicioso tempero de nostalgia. Abrangem dos foxes da cantora Vera Lynn às irônicas canções do compositor, ator e dramaturgo Nöel Coward, ambos very british.
Pagando tributo a Coward, o sagaz Ray Davies também se exercita no fino senso de humor, com especial apreço pela ironia. Suas composições dos anos 60 não são sobre o universo agitado do rock. Mas sobre os ingleses comuns, com seus costumes e preconceitos, seus pequenos mundinhos, sua pequenez e mesquinharia, suas manias por jardinagem, previsão do tempo e papéis de parede. Ou também, contraditoriamente, sobre a beleza de levar uma vidinha simples e comezinha num subúrbio londrino como o de Muswell Hill, onde os irmãos Davies foram criados, enquanto procuravam no dial do rádio “igrejinha” canções de Chuck Berry, Dion and the Belmonts e Johnny and the Hurricanes.
O estilo Ray Davies de compor — e de cantar com sua voz de branco inglês que já não pretende soar como negão americano —, quase sempre com letras irônicas e muito bem escritas, tornou-se cada vez mais consistente. Passou a abarcar ainda mais gêneros musicais que o garoto ouvira na infância, incluindo o calypso e o mambo. Isso, por sorte, afastou Ray Davies dos modismos, como o som psicodélico. Como bem sabemos, Beatles, The Who e Stones, em graus diferentes, e com resultados desiguais, absorveram o psicodelismo — os Stones, por sinal, se deram muito mal nessa incursão, com o amarfanhado Their Satanic Majesties Request. Já os Kinks jamais gravaram uma faixa psicodélica sequer. Nem ousariam mais tarde qualquer escapadela pelo rock classicoso ou progressivo. Também jamais cortejaram o sonho hippie. Por isso, não precisaram dar o braço a torcer como o The Who e compor “Won’t Get Fooled Again”.
Só não puderam escapar da influência psicodélica na arte de capa de Something Else By the Kinks. Era o espírito da época. O psicodelismo é óbvio no lettering. Ainda que lá esteja, também, o tal tempero de nostalgia, no estilo Liberty, revisto, do porta-fotos. Mas nem pense em guitarras distorcidas, instrumentos orientais ou faixas longuíssimas. Nada disso. Something Else oferece 13 canções pop curtas e bem urdidas, quase todas com acompanhamento base de violão, ainda que Dave Davies, um virtuose, capriche na guitarra elétrica. A mais longa é “Waterloo Sunset”, com seus 3 minutos e 16 segundos. Não seria preciso mais.
A mais curta dura só 2 minutos e 3 segundos. Chama-se “No Return”. Surpreenda-se: é uma bossa nova. Sim, uma bossa nova simples e muito bem sacada, como, já nos anos 80, outros grupos ingleses como Matt Bianco e Everything But the Girl tentaram — e não conseguiram — fazer.
Para separar as influências trabalhadas por Ray com mestria, pode-se dizer que “David Watts” é uma marcha roqueira. Também “Harry Rag” mantém esse compasso marcial — mas é uma cançoneta russa, até a última nota, enquanto “Two Sisters”, armada sobre uma cama de cravos bachianos, lembra as composições de Paul Simon à época. Já “Tin Soldier Man” é puro music hall. Poderia ter sido composta por Nöel Coward, assim como “End of the Season”, esta uma fiel seguidora da lídima linha nostálgica iniciada em 66 pelo Lovin’ Spoonful com “Daydream” e continuada pelos Beatles, no ano seguinte, com “When I’m Sixty Four”. Uma delícia.
“End of the Season”, vale lembrar, é uma parceria de Ray com o mano Dave. Assim como a dylanesca “Death of a Clown”. Dave Davies — que mais tarde comporia clássicos do quilate de “Stranger”, recentemente regravada por Norah Jones — ainda não vivia tão às turras com o irmão, comportamento que seria determinante para a dissolução do grupo, em 1994. Ao contrário. Comparece com outras duas composições no disco, somente de sua autoria, ambas de alta qualidade: “Funny Face” e “Love e Till the Sun Shines”. As duas, por sinal, são as únicas assumidamente rhythm’n’blues do LP.
Apesar de ótimo, o álbum Something Else by the Kinks vendeu pouquíssimo nos Estados Unidos, o país que banira os Kinks. Isso não impediu que Ray Davies continuasse amando os EUA (morou em Nova York nos anos 70), a música americana e também as mulheres americanas. Mais tarde se casaria com uma delas, a cantora e compositora Chrissie Hynde, líder dos Pretenders, e teria um filho com ela. Esse amor pelos EUA não cessaria nem mesmo depois de levar um tiro numa viagem por New Orleans em 2004. Safou-se. Em 2013, Ray lançou um livro autobiográfico e um disco com o mesmo nome: Americana. Mais do que uma referência, a América é uma obsessão para o mais inglês dos roqueiros britânicos.
* Walterson Sardenberg Sº é jornalista. Nasceu numa data muito especial: 6 de julho de 1957. O dia em que John Lennon e Paul McCartney se conheceram.
O álbum, com algumas faixas bônus!:
+MAIS:
Fagner, talvez por não fazer referências a drogas ou ácidos(pelo que eu saiba, pelo menos) o autor tenha entendido dessa forma, como um disco não psicodélico. E de fato não é um disco psicodélico, talvez a faixa “Lazy Old Sun” seja a única com um tom mais psicodélico, pela levada lenta e mudanças repentinas. Mas de qualquer forma é uma obra-prima da música pop, com certeza.
Gostaria de entender o que o autor do texto entende por psicodelia. Esse disco tem vários dos clichês dos discos psicodélicos da época, como o uso de instrumentos não convencionais no rock, alterar a rotação da gravação para dar efeito mais arrastado para os vocais e o uso de diversos outros truques de estúdio, como fizeram Stones, Beatles e Beach Boys na época. Pra mim, esse disco do Kinks é uma pérola psicodélica.