Há 45 anos… dia 18 de setembro de 1970.
Um rastro de luz
Há 45 anos morria Jimi Hendrix, que teve uma carreira tão brilhante e rápida quanto a passagem de um cometa
POR WALTERSON SARDENBERG Sº*
Como pode alguém em apenas três anos e oito meses e meio reinventar a guitarra e os blues? Como pode alguém nesse curto espaço de tempo revolucionar o meio musical? Assim aconteceu com Jimi Hendrix. Do dia 16 de dezembro de 1966, quando o compacto-simples com “Hey Joe” foi lançado pela Polydor britânica, a 18 de setembro de 1970, quando o cantor, compositor e guitarrista americano morreu, foi tudo, ao mesmo tempo, intenso e fugaz.
Como a passagem de um cometa.
Isso. Hendrix foi um cometa. Deixou um rastro de luz. Junto com uma interrogação na atmosfera: como, afinal, morreu com apenas 27 anos?
Na época, há 45 anos, as manchetes dos jornais estamparam que o motivo foram as drogas. Ou o excesso delas. Hendrix seria o doidão inconsequente, o Baco alucinado, o hedonista sem freios, o viciado irrecuperável, o desencaminhador da juventude. O sensacionalismo beócio e o moralismo cretino passaram por cima de uma constatação óbvia: a droga que ajudara a matar James Marshall Hendrix podia ser encontrada, com venda legal, em qualquer boa farmácia de Londres. Bastava uma receita médica. Pois é, na noite anterior à sua morte, Hendrix consumira pílulas do barbitúrico. Os mesmos barbitúricos que, quatro anos antes, os Rolling Stones cantaram com cinismo em “Mother’s Little Helper”, ou seja, “Os pequenos ajudantes das mamães” — um “remedinho” respeitável, utilizado pelas ainda mais respeitáveis senhoras para levá-las ao sono diário, livrando-as, por um momento, do tédio.
Hendrix encontrara os comprimidos, da marca Vesparax, no banheiro do apartamento da alemã Monika Danemann, de 25 anos, com quem passaria a noite. Os dois vinham mantendo um caso desde 12 de janeiro daquele ano de 1970, quando se conheceram em um concerto em Düsseldorf, na Alemanha. Nos depoimentos dados à polícia, Monika não sabia calcular quantos comprimidos Hendrix ingerira. Chegou a dizer que foram nove. Depois, negou. O segredo morreu com ela. Monika faleceu aos 50 anos, em 1996, dentro de um Mercedes-Benz, em Seaford, na Inglaterra. Ao que tudo leva a crer, suicidou-se com uma dosagem excessiva de barbitúricos.
Mas Hendrix não queria morrer. É o que relatam os amigos. Estava animadíssimo. Estava com tudo. Estava terminando de gravar um álbum duplo. O disco, por sinal, teria um nome pra lá de otimista: First days of the new rising sun (Primeiros dias do novo Sol nascente). No final de setembro, Hendrix encontraria o grande trompetista Miles Davis para fazerem algo juntos. Estava marcado. Falava disso com um entusiasmo pleno.
Miles foi ao enterro de Hendrix em Seattle, cidade natal do guitarrista. Levou o seu trumpete e fez menção de tocá-lo à beira do túmulo, em homenagem ao amigo. Leon, irmão de Hendrix, o impediu. É o que relatam. Será?
Quase tudo na vida de Hendrix tomou a dimensão de lenda. Teria mesmo apenas 4 anos de idade, quando irrompeu na sala da casa modesta em Seattle tocando blues na gaita com rara habilidade, para espanto do pai, o jardineiro Al? Foi mesmo expulso da banda de Little Richard porque tivera a pachorra de querer aparecer, no palco, mais do que o vaidosíssimo líder? Como alguém expulsa Hendrix — ainda que este alguém seja Little Richard?
As gravações de seus discos — que, sabe-se hoje, obedeciam a uma rigorosa disciplina — também suscitaram lendas. Por exemplo: conta-se que a faixa “Voodo Child”, do álbum duplo Eletric Ladyland, teria sido registrada altas horas da madrugada, em Nova York. Hendrix e o baterista de seu trio, Mitch Mitchell, estariam em uma casa noturna, na companhia do baixista Jack Cassidy (do Jefferson Airplane) e do multi-instrumentista Steve Winwood (do Traffic). Lá pelas tantas, o guitarrista levou a turma para o estúdio Record Plant. Aproveitou e carregou na balada conhecidos que biritavam com eles e não tocavam nem sininho de Natal.
Assim, sem ensaios, com gente alcoolizada refestelada no chão, saiu a gravação perfeita. Hendrix está soberbo na guitarra da canção que já foi chamada de mescla de Chicago Blues com ficção científica. Seus “duelos” com o órgão Hammond tocado por Steve Winwood tornaram-se antológicos. Um dos grandes momentos do rock — e do Chicago Blues.
Até mesmo os barbitúricos que teriam matado Jimi Hendrix estão na dimensão das lendas. Na realidade, Hendrix morreu por uma causa indireta. Ou seja, embalado pelos comprimidos e, provavelmente, álcool, acabou vomitando. O corpo rejeitara os comprimidos. Deitado de barriga para cima, porém, Hendrix morreu afogado no próprio vômito. Como isso pode ter ocorrido?
Há quem culpe Monika Danemann por negligência. Não só a ela. Também os enfermeiros do Hospital St. Mary Abbott’s, em Londres. Chamados por Monika, eles não notaram os sintomas de afogamento. Acomodaram Hendrix de barriga para cima na ambulância. Ele já chegou morto no hospital. Isto é fato. Ou seria lenda?
Qual a culpa de Monika, uma pretendente a pintora? A demora no atendimento. Antes de chamar os médicos, ela telefonou duas vezes, em desespero, para o cantor Eric Burdon, então já desligado da banda The Animals — e muito amigo de Hendrix. Já na primeira ligação, Burdon foi enfático: “Chame uma ambulância imediatamente!”. Monika, todavia, não agiu com a urgência necessária. Há quem suspeite que tinha algo a esconder. Problemas com a imigração, por exemplo. Teria receio, portanto, de chamar os médicos — e, por intermédio deles, a polícia — ao seu apartamento. Daí ter feito uma segunda ligação para Burdon. “Mas como? Você ainda não chamou a ambulância?”, ele alarmou-se.
Três pessoas não só jamais se conformaram com a maneira estúpida com que Hendrix morreu como tentaram ao longo de décadas descobrir a história verdadeira: o baterista Mitch Mitchell; sua mulher, Dee; e Kathy Etchingham, ex-namorada do guitarrista. Em 1991, eles conseguiram que a Scotland Yard os ouvisse sobre um pedido formal de reabertura das investigações. Dois anos se passaram até que a polícia britânica finalmente concordasse em desarquivar o caso. Em 1994, contudo, a Scotland Yard distribuiu uma nota lacônica, dizendo que não encontrara qualquer evidência culposa que recomendasse a insistência no inquérito. A morte de Hendrix voltou aos arquivos da polícia mais famosa do planeta. Para tornar-se de vez uma lenda.
Mas será mesmo de verdade alguém que mudou tanto o mundo à sua volta em tão pouco tempo? Hendrix tornou-se ele próprio uma lenda. Ainda bem que restou sua estupenda música para lembrar que, de fato, o cometa riscou — e beijou — o céu.
* Walterson Sardenberg Sº é jornalista desde 1978. Nasceu em um dia histórico: 6 de julho de 1957, em que Paul McCartney e John Lennon de conheceram.
Documentário “Jimi Hendrix – The Last 24 Hours”:
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