30 de maio de 1265 (?)
POR JULIÁN FUKS*
Há 750 anos, mais alguns dias, menos alguns dias, nascia numa manhã ou numa tarde desconhecida um homem chamado Dante Alighieri – ou coisa parecida. Na imprecisão da notícia talvez se possa depreender a imprecisão de seu sentido: o que nascia naquele dia distante, encarnado num sujeito que alguém chamou Dante Alighieri, é algo da ordem do indefinível. Talvez nascesse ali, numa ruela de Florença, o maior poeta italiano de todos os tempos. Talvez nascesse ali, em páginas muito difundidas, a própria poesia em uma de suas expressões mais intensas. Há quem vá mais longe, quem diga que ali nascia algo maior ainda: nossa própria concepção de indivíduo, um sentimento a atravessar os séculos, a noção de que somos seres únicos, em choque contra os furores de um deus ou os desígnios de um tempo.
O homem que nascia, se ali nascia um homem, teria uma vida repleta de acontecimentos – na poética ou na política, na diplomacia ou na guerra. Muitos seriam os embates travados por este homem, e grave seria o furor voltado contra ele. Desde cedo, em batalhas literais ou metafóricas, Dante seguiu a linhagem da família e lutou em nome dos guelfos, disputando contra os gibelinos o poder em Florença. Tão triunfante se mostrou em serviço, tão hábil cavaleiro, tão sábio discursista, que logo entrou para o Conselho dos Cem e passou a frequentar as altas esferas do governo. Tinha 35 anos, estava no meio do caminho de sua vida, quando foi escolhido para uma missão importantíssima: liderar a comitiva que enfrentaria o Papa do momento. Enquanto ainda tentava se situar nos corredores do Vaticano, seu grupo foi destituído em Florença: Dante foi julgado sumariamente e condenado ao exílio eterno. Muitas vezes lhe ofereceriam o perdão, bastando que pagasse uma multa e confessasse seus erros. Muitas vezes Dante rejeitaria, apegado ao seu orgulho imprescritível, condenado então à morte pela insolência. O resto de seus dias Dante viveu longe da cidade em que nasceu, morrendo em 1321, de morte morrida, na cidadela de Ravena.
Mas nesse breve resumo se omite o mais importante dos acontecimentos – aquele que se torna cifra de uma vida inteira, o momento em que um homem se encontra para sempre consigo mesmo. Tinha 35 anos Dante Alighieri, estava no meio do caminho de sua vida, quando secretos desígnios o escolheram para liderar a comitiva de um só homem ao inferno, ao purgatório e às mais altas esferas celestes. Nos dois primeiros destinos seria guiado por Virgílio, poeta clássico latino, voz da razão que iluminaria as sombras austeras, que faria toleráveis os choros agudos, os gritos estridentes, os clamores de desespero. No terceiro destino, nos círculos concêntricos do Paraíso, rumo ao muito esperado encontro com seu deus, teria a companhia de Beatriz – sua amada eterna, voz da piedade e da fé.
Muitas almas Dante encontraria nesse trajeto, almas dos mais distintos calibres, essências das mais diversas. Para cada uma ele procuraria as palavras certas, em cada uma intuiria um sentido preciso, uma indiscutível coerência. Esses relatos incontáveis da vida terrena, redigidos com ritmo impecável, num rigoroso sistema de rimas articuladas em rigorosa métrica, Dante reuniria em sua obra maior, sua Divina Comédia. Há quem diga, como muitos disseram ao longo destes sete séculos, que se trata de um belo livro. Alguns, no entanto, preferem ler ali a suma maior da história humana, o testemunho completo da multiplicidade de nossa existência.
* Julián Fuks é escritor e crítico literário, autor de “Procura do Romance” e “Histórias de Literatura e Cegueira”.
Fontes:
78 Guilherme de Abreu Alves