Há 100 anos… dia 29 de dezembro de 1916.
POR CAETANO W. GALINDO*
Cento e dez anos atrás, em 1906, James Joyce era um total desconhecido. Dez anos antes da publicação de seu primeiro romance, ele era irrelevante em qualquer cenário que não fosse o de Dublin, cidade que abandonou dois anos antes e onde uma menção a seu nome a essas alturas provavelmente provocaria a pergunta: “Ele ainda canta?”
Ele já tinha aprendido norueguês para escrever uma carta a Henrik Ibsen, estudado alemão para traduzir duas peças de seu discípulo Gerhart Hauptmann, publicado poemas e contos soltos… mas nada que lhe garantisse uma reputação fora da “Ilha”. E estava no “Continente”. Depois de uma frustrada passagem pela universidade de Paris, brutalmente cortada pela morte de sua mãe; depois de seu retorno à Irlanda e de seu encontro, no dia 16 de junho de 1904 (o “Bloomsday” original), com aquela que agora já era a mãe de seu primeiro filho; depois de fugir da Irlanda, ele ainda não tinha nem casa.
Seu livro de contos, Dublinenses, já estava pronto. Ou ele achava que estava, tanto que desde o ano anterior vinha tentando publicá-lo. Mas será apenas em 1907 que vai acrescentar à coleção o que se tornará seu conto mais famoso: a quase-novela “Os Mortos”. Fora isso, ele quase nada tinha publicado depois de seu “exílio”, apesar de já ter na gaveta aqueles catorze contos assombrosos, que ainda levaria oito anos para conseguir ver publicados.
A essa altura, em 1906, aos 22 anos, ele já estava envolvido com uma narrativa autobiográfica nos moldes do Bildungsroman alemão. Um romance de formação do artista. Um relato, uma confissão, um retrato.
Cerca de dois anos depois de iniciar a obra, no entanto, num momento de frustração pessoal, financeira e artística, Joyce se livra do manuscrito daquilo que parecia ir se tornando uma gigantesca obra-vida. Anos depois, diria que atirou o manuscrito à lareira, de onde sua irmã salvou o que pôde com as mãos chamuscadas… O estado das folhas encontradas depois da sua morte, no entanto, nega essa hipótese. Esse livro deveria se chamar Stephen Herói, e dele temos apenas aqueles fragmentos, publicados por seu biógrafo somente depois da morte do autor. No Brasil, o “livro” foi traduzido, já no século XXI, por José Roberto O’Shea.
Mas dele surgiu um fruto mais inesperado. Surgiu um livro que, em 1916, seria publicado (apenas nos Estados Unidos) como Um retrato do artista quando jovem. Pois Joyce desistiu da forma, da abordagem que vinha adotando para narrar a formação da personagem Stephen, um nome que ele mesmo usava (Stephen Daedalus, inicialmente) como pseudônimo para publicar na imprensa irlandesa. Mas o que Joyce não abandonou foi o projeto de escrever sua versão de um romance de formação.
Na verdade, o mais incrível de todo esse episódio (com ou sem a dramática cena das páginas pegando fogo) é que neste momento pode-se dizer que surge em Joyce o prosador que ele teria de ser. Depois da prática (de fato levada à perfeição) da narração enxuta, encaixada, irretocável das histórias de Dublinenses, ele daqui em diante vai desistir integralmente dos modelos tradicionais da ficção realista. É a partir daqui que sua “máxima” poderia ser definida como a integração de forma e conteúdo: o processo de buscar em cada tema, em cada cena, os meios e as técnicas ali sugeridos, exigidos por aquele conteúdo… achar em cada objeto a forma que nasça integralmente de cada objeto e que permita que ele seja visto de maneira nova, e muito mais poderosa.
Joyce simplesmente abandona o extenso manuscrito em desenvolvimento e recomeça do zero, com uma abordagem radical. E é aqui que nasce o autor do Ulysses.
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A primeira página de Um retrato do artista quando jovem é uma das coisas mais sublimes, mais corajosas e mais descaradas que eu conheço em literatura. Ali, sem qualquer introdução, sem qualquer dica do que está para acontecer, somos confrontados com uma voz narradora tão definitivamente aproximada da consciência da personagem, tão quase-identificada com ela, que chega a se ver, de fato, limitada por essa personagem: definida por essa consciência. Esse narrador (que será desenvolvido em todo seu potencial no discurso indireto livre do Ulysses) não conhece o que a personagem não conhece; não vê o que ela não vê; não tem palavras para o que ela não entende. Ele não “abre espaço” para a voz da outra voz; ele a aceita com suas limitações, ele a incorpora sem delimitar seu espaço próprio e sua autonomia, sem se defender (e sem permitir que o autor se defenda) de parecer ingênuo, bobo.
E a primeira página, além de tudo, cobre as primeiras lembranças do protagonista. Fragmentos de versos, impressões visuais imperfeitas: o mundo limitado de um bebê que se transforma, parágrafo a parágrafo, no mundo pouco menos limitado de uma criança pequena. Longe da reconstituição quase cínica de Santo Agostinho quando narra sua primeira infância, o que temos aqui é um narrador que sabe nada a mais que o bebê. Quase nada.
Daí o que chamei não apenas de coragem, não apenas de sublime, mas também de descaramento. Joyce, nas primeiras linhas do que viria a ser seu primeiro romance, se apresenta não como supremo estilista, refinado prosador, requintado observador… mas como mímico dotado apenas dos recursos e do intelecto de uma criança de colo.
Prossiga quem tiver coragem, curiosidade… descaramento.
Ele tinha. Prosseguiu.
E é assim que o livro vai se constituindo, trecho a trecho, como a evolução progressiva da voz narradora, na medida em que a vida de Dedalus vai se desdobrando, na medida em que sua consciência e suas observações vão também se sofisticando. Até que, orgulho trágico final, o Dedalus das últimas páginas (mal saído da adolescência) se acredite maduro a ponto de prescindir da voz do narrador: e recebemos esses trechos finais sob a forma de um diário, em primeira pessoa egoísta.
E percebemos (triunfo final da demonstração do poder do romance) que esse discurso direto e “confessional”, sem barreiras por ser estritamente pessoal, privado, agora nos afasta de Dedalus mais do que qualquer outra abordagem.
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Os livros de prosa de Joyce de certa forma penam por viverem à sombra do colosso que é o Ulysses. Mas o Finnegans Wake é, provavelmente, o maior experimento da história da literatura; Dublinenses, por si só, garantiria a reputação de qualquer escritor, apesar de ter sido escrito por um rapaz; e Um retrato…
Mais do que um dos maiores romances de formação do século XX, mais do que um documento para se entender a vida de Joyce, a Irlanda, a arte daquele tempo e de hoje, as pulsões daquele menino e de nós, mais do que o retrato que se pretendia de fato, o primeiro romance de Joyce, depois de renascer das hipotéticas cinzas de um romance mais tradicional (e muito menos satisfatório), acabou sendo o laboratório onde se forjou a maior revolução da prosa literária modernista. Um romance de formação que diante dos nossos olhos se forma (e se “deforma”) como romance. Uma lente nova que refrata de maneira violenta a “realidade” que enfoca e, paradoxalmente, parece proporcionar dela um conhecimento muito mais direto.
E, além de tudo, o romance jamais poderia ficar à sombra do Ulysses, pela simples razão de ser ele próprio como que a primeira parte do livro que, naquele mesmo ano de 1906, era ainda um esboço para talvez um novo conto a se incluir em Dublinenses. Pois o Ulysses se abre poucos meses depois da última página de Um retrato… O Ulysses conta com o fato de que já conhecemos Dedalus, e com o fato de que já fomos apresentados a uma versão de sua técnica literária de base. Acompanhamos a formação daquele rapaz, acompanhamos o desenvolvimento daquela voz de outras vozes. Agora é a hora, finalmente, de vê-los encontrar o mundo, o outro.
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Cem anos atrás, com a publicação definitiva de Um retrato do artista quando jovem, depois dessa pequena ilíada de dez anos de batalha literária e editorial, começava a grande odisseia de Dedalus, nascia a grande odisseia de Bloom.
Começava ali a grande odisseia de Jim Joyce, que nos deu a nós.
* Caetano W. Galindo é professor da UFPR e tradutor. Sua versão de Um retrato do artista quando jovem foi publicada para comemorar o centenário do romance.
Documentário da RTP de Portugal sobre James Joyce:
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